Paradoxos do cristianismo

Obra: "Human heart", por Denisa Laura.

O caminho dos paradoxos é o caminho da verdade.
Oscar Wilde (1854 – 1900)



O verdadeiro problema com este nosso mundo não é que se trata de um mundo sem razão, nem tampouco de um mundo razoável. O tipo mais comum de problema é que se trata de um mundo quase razoável, mas não totalmente. A vida não é um ilogismo; todavia, é uma cilada para os lógicos. Parece simplesmente um pouco mais matemática e regular do que é; sua exatidão é óbvia, mas sua inexatidão está escondida; sua loucura está à espreita. Vou dar um exemplo grosseiro do que quero dizer.

Suponhamos que alguma criatura matemática proveniente da lua examinasse o corpo humano; ela imediatamente veria que o fato essencial nesse caso é que o corpo é duplicado. Um homem contém dois homens: um à direita que se parece exatamente com outro à esquerda. Depois de notar que há um braço do lado direito e outro do lado esquerdo, uma perna à direita e outra à esquerda, ela poderia ir adiante e ainda encontrar de cada lado o mesmo número de dedos nas mãos, o mesmo número de dedos nos pés, olhos geminados, orelhas geminadas, narinas geminadas e até lobos do cérebro geminados. No mínimo ela tomaria o fato como lei; e depois, quando encontrasse um coração de um lado, ela deduziria a presença de outro coração do outro lado. E exatamente nesse momento, no ponto em que se sentisse mais segura de estar certa, ela estaria errada.

É esse silencioso desvio milimétrico da precisão que constitui o elemento misterioso presente em tudo. Parece uma espécie de traição secreta do universo. Uma maçã ou uma laranja é redonda o suficiente para ser chamada de redonda, e, no entanto, no fim das contas, não é redonda. A própria Terra tem a forma de uma laranja para induzir algum simples astrônomo a chamá-la de globo. Em inglês dizemos “uma lâmina de grama” em alusão à lâmina de uma espada, porque ambas têm uma extremidade pontuda; mas não é bem assim.

Em todas as coisas, em toda parte, existe o elemento do misterioso e do incalculável. Ele foge aos racionalistas, mas só escapa no último momento. Da grande curvatura da Terra alguém poderia facilmente inferir que cada centímetro dela apresentasse a mesma curva. Pareceria racional que, assim como um ser humano tem um cérebro de ambos os lados, ele devesse ter um coração dos dois lados. Todavia, os cientistas ainda estão organizando expedições para descobrir o Polo Norte, porque eles gostam tanto de paisagens planas. Os cientistas estão organizando expedições para descobrir o coração do ser humano; e quando tentam descobri-lo, geralmente procuram do lado errado.

Ora, a verdadeira percepção ou inspiração é mais bem testada quando se observa se ela detecta essas malformações ou surpresas ocultas. Se o nosso matemático da lua visse dois braços e duas orelhas, ele poderia deduzir as duas omoplatas e as duas metades do cérebro. Mas se ele adivinhasse que o coração do homem estava no lugar certo, então eu deveria chamá-lo de algo mais que um matemático.

OrtodoxiaOra, essa é exatamente a reivindicação que venho fazendo para o cristianismo. Não simplesmente que ele deduz verdades lógicas, mas que quando de repente se torna ilógico, ele encontrou, por assim dizer, uma verdade ilógica. Ele não apenas acerta em relação às coisas, mas também erra (se assim se pode dizer) exatamente onde as coisas saem erradas. Seu plano se adapta às irregularidades ocultas e espera o inesperado. É simples no que se refere à verdade sutil. Admite que o homem tem duas mãos, mas não admite (embora todos os modernistas lamentem o fato) a dedução óbvia de que tenha dois corações.

Meu único propósito neste capítulo é mostrar isso; mostrar que quando sentimos a existência de algo estranho na teologia cristã, geralmente vamos descobrir que existe algo estranho na verdade.

Eu aludi a uma frase absurda que afirmava que não se pode crer neste ou naquele credo em nossa época. É claro que se pode acreditar em qualquer coisa em qualquer época. Mas, embora pareça estranho, há de fato um sentido em que um credo, quando digno de alguma crença, pode ser abraçado mais firmemente numa sociedade complexa do que numa simples. Se um homem julgar que o cristianismo é verdadeiro em Birmingham, ele realmente tem razões mais claras para ter fé do que se o tivesse julgado verdadeiro em Mércia. Pois quanto mais complicada parecer a coincidência, tanto menos ela pode ser uma coincidência. Se caíssem flocos de neve na forma, digamos, do coração de Midlothian, poderia ser um acidente. Mas se caíssem flocos de neve com a forma exata do labirinto de Hampton Court, acho que se poderia chamar isso de milagre.

É exatamente esse tipo de milagre que passei a perceber na filosofia do cristianismo. A complicação do nosso mundo moderno prova a verdade do credo mais perfeitamente do que qualquer um dos simples problemas das épocas de fé. Foi em Notting Hill e Battersea que comecei a ver que o cristianismo era verdadeiro. É por isso que a fé tem aquela elaboração de doutrinas e detalhes que tanto incomoda os que admiram o cristianismo sem acreditar nele. Quando alguém abraça uma crença, essa pessoa se sente orgulhosa de sua complexidade, como os cientistas se sentem orgulhosos da complexidade da ciência. O fato mostra como ela é rica em descobertas.

Se a crença simplesmente está certa, é um elogio dizer que ela é elaborada. Uma vareta poderia encaixar-se perfeitamente num buraco, ou uma pedra num vão, por mero acaso. Mas uma chave e uma fechadura são ambas complexas. E se uma chave se encaixa numa fechadura, você sabe que se trata da chave certa.

Mas essa complicada exatidão da coisa dificulta grandemente o que me proponho fazer agora: descrever esse acúmulo de verdade. Fica muito difícil para um homem defender alguma coisa da qual ele está inteiramente convencido. É comparativamente fácil quando se está convencido em parte. Ele está convencido apenas em parte porque descobriu esta ou aquela prova da coisa, e consegue explicá-la. Mas ninguém se sente realmente convencido acerca de uma teoria filosófica quando apenas descobre alguma coisa para prová-la.

A pessoa fica realmente convencida quando descobre que tudo prova aquela teoria. E quanto mais numerosas forem as razões apontando para essa convicção, tanto mais confusa ela ficará se de repente for solicitada a resumilas. Assim, se alguém perguntasse a um homem de inteligência comum, de supetão: “Por que você prefere a civilização à selvageria?”, ele olharia desesperado ao redor contemplando um objeto depois do outro, e só saberia responder vagamente: “Bem, existe esta estante de livros… e o carvão na caixa de carvão… e pianos… e a polícia”. Toda a argumentação em defesa da civilização consiste no fato de que a argumentação em sua defesa é complexa. A civilização fez tantas coisas. Mas essa mesma multiplicidade de provas que deveria tornar a resposta irrefutável torna-a impossível.

Portanto, toda convicção completa está envolvida numa espécie de desamparo. A crença é tão enorme que se exige muito tempo para colocá-la em ação. Essa hesitação, muito estranhamente, surge sobretudo de uma indiferença acerca do ponto onde se deveria começar. Todas as estradas conduzem a Roma; e isso é uma razão que explica por que muitos nunca chegam lá. No caso desta defesa da convicção cristã confesso que eu tanto poderia começar a discussão com uma coisa quanto com outra; poderia começar com um nabo ou um táxi. Mas, se eu tiver de ter o mínimo de cuidado para esclarecer o que quero dizer, será mais sensato, na minha opinião, continuar os argumentos gerais do último capítulo, que tinha como objetivo insistir na primeira dessas coincidências, ou melhor, ratificações místicas.


Extraído da obra: “Ortodoxia”, escrita por G. K. Chesterton (1874 – 1936).
Publicada pela editora Mundo Cristão, sob ISBN: 978-8543302751.


Nota da editoria:

Imagem da capa: “Human heart”, por Denisa Laura.




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