Três excertos da obra “Ortodoxia”, de Chesterton

Obra: "The Laughing Philosopher, G. K. Chesterton", por Galbraith O'Leary.

A tolerância é a virtude do homem sem convicções.
G. K. Chesterton (1874 – 1936)



1. Capítulo II: O maníaco


Os cristãos admitem que o universo é complexo e até misturado, exatamente da mesma forma que um homem sadio sabe que é complexo. O homem sadio sabe que nele há um vestígio da fera, um vestígio do demônio, um vestígio do santo, um vestígio do cidadão. Mais que isso, o homem realmente sadio sabe que nele há um vestígio do louco. Mas o mundo do materialista é totalmente simples e sólido, exatamente como o louco tem plena certeza de que ele é sadio. O materialista tem certeza de que a história tem sido simples e unicamente uma cadeia de causação, exatamente como a pessoa interessante mencionada acima tem plena certeza de que é simples e unicamente uma galinha. Os materialistas e os loucos nunca têm dúvidas.

As doutrinas espirituais na verdade não limitam a mente como fazem as negações materialistas. Mesmo acreditando na imortalidade, eu não preciso pensar nela. Mas se a desacredito, nela não devo pensar. No primeiro caso, a estrada está aberta e posso ir adiante até onde quiser; no segundo caso, a estrada está fechada. Mas o argumento é ainda mais forte, e o paralelo com a loucura é ainda mais estranho. Pois o nosso argumento contra a teoria lógica e exaustiva do lunático foi que, certa ou errada, ela aos poucos destruía sua humanidade.

Agora a acusação contra as principais deduções do materialista é que, certas ou erradas, elas aos poucos destroem a sua humanidade. Não estou me referindo apenas à bondade; estou me referindo a esperança, coragem, poesia, iniciativa, tudo o que é humano. Por exemplo, quando o materialismo leva os homens a um fatalismo completo (como em geral acontece), é totalmente inútil fingir que ele, nalgum sentido, é uma força libertadora. É absurdo dizer que se está promovendo especialmente a liberdade quando só se usa o livrepensar para destruir o livre-arbítrio. Os deterministas vieram para amarrar, não para soltar. Podem muito bem chamar sua lei de “corrente” de causação. É a pior corrente que já prendeu um ser humano.


2. Capítulo III: O suicídio do pensamento


O novo rebelde é um cético, e não confia inteiramente em nada. Não tem nenhuma lealdade; portanto, ele nunca poderá ser de verdade um revolucionário. E o fato de que ele duvida de tudo realmente o atrapalha quando quer fazer alguma denúncia. Pois toda denúncia implica alguma espécie de doutrina moral; e o revolucionário moderno duvida não apenas da instituição que denuncia, mas também da doutrina pela qual faz a denúncia. Assim, ele escreve um livro queixando-se de que a opressão imperialista insulta a pureza das mulheres; e depois escreve outro (sobre o problema do sexo) no qual ele mesmo a insulta. Ele amaldiçoa o sultão pela perda da virgindade de garotas cristãs; e depois amaldiçoa a sra. Grundy pela preservação dela. Como político, ele grita que toda guerra é um desperdício de vida; e depois, como filósofo, grita que toda vida é um desperdício de tempo.

Obra "Ortodoxia", escrita por G. K. Chesterton (1874–1936). Publicada pela Mundo Cristão, sob ISBN-13 : 978-8543302751.Um pessimista russo denunciará um político por matar um camponês; e depois, pelos mais elevados princípios filosóficos, provará que o camponês deveria ter-se suicidado. Alguém denuncia o casamento como uma mentira; e depois denuncia os libertinos aristocráticos por tratarem essa mesma instituição como uma mentira. Alguém chama a bandeira de bugiganga; e depois acusa os opressores da Polônia ou da Irlanda de terem suprimido aquela bugiganga. O adepto dessa escola primeiro participa de uma reunião política, na qual se queixa de que os selvagens são tratados como se fossem animais; depois apanha o chapéu e o guarda-chuva e vai para uma reunião científica, na qual prova que eles são praticamente animais.

Em resumo, o revolucionário moderno, sendo um cético sem limites, está sempre ocupado em minar suas próprias minas. No seu livro sobre política ele ataca os homens por espezinharem a moralidade; no seu livro sobre ética ele ataca a moralidade por espezinhar os homens. Portanto, o homem moderno em estado de revolta tornou-se praticamente inútil para qualquer propósito da revolta. Rebelando-se contra tudo, ele perdeu o direito de rebelar-se contra qualquer coisa específica.

Pode-se acrescentar que é possível observar o mesmo vazio e falência em todos os tipos ferozes e terríveis de literatura, especialmente na sátira. A sátira pode ser maluca e anárquica, mas ela pressupõe a aceitação da autoridade de certas coisas sobre outras; pressupõe um padrão. Quando criancinhas da rua riem-se da obesidade de algum distinto jornalista, elas estão inconscientemente adotando um padrão de escultura grega. Estão apelando para o Apolo de mármore. E o curioso desaparecimento da sátira de nossa literatura é um exemplo das coisas cruéis que estão desaparecendo pela falta de qualquer princípio contra o qual se possa ser cruel.


3. Capítulo VII: A eterna revolução


Dizem que outrora julgávamos certo comer seres humanos, o que não é verdade; mas não estou aqui preocupado com a história dessas pessoas, que é altamente anti-histórica. De fato, a antropofagia é com certeza uma coisa decadente, não uma coisa primitiva. É muito mais provável que o homem moderno coma carne humana por afetação do que o homem primitivo a tenha comido por ignorância. Estou aqui apenas seguindo as linhas gerais de sua argumentação, que consiste em defender que o homem tornou-se progressivamente mais clemente, primeiro com os cidadãos, depois com os escravos, depois com os animais e depois (presumivelmente) com as plantas.

Acho errado sentar-me em cima de um homem. Em breve, vou achar errado sentar-me sobre um cavalo. No fim (suponho) vou achar errado sentarme numa cadeira. Essa é a tendência da argumentação. E a seu favor pode-se dizer que é possível falar dela em termos de evolução ou progresso inevitável. Uma tendência constante de tocar cada vez menos coisas poderia — a gente sente — ser uma simples tendência inconsciente básica, como a tendência de uma espécie a ter cada vez menos filhos. O impulso pode realmente ser evolucionário, porque é estúpido.

O darwinismo pode ser usado para apoiar duas moralidades insanas, mas não pode ser usado para apoiar uma que seja sadia. O parentesco e a competição de todas as criaturas vivas podem ser utilizados como motivos para alguém ser insanamente cruel ou insanamente sentimental, mas não para alimentar um amor sadio pelos animais. Com base na evolução, você pode ser desumano ou absurdamente humano; mas não pode ser um ser humano. O fato de você e um tigre serem a mesma coisa pode ser motivo para ser gentil com o tigre. Ou então pode ser motivo para ser tão cruel como o tigre. Um jeito é treinar o tigre a imitar você; outro jeito mais rápido é você imitar o tigre. Mas em nenhum desses casos a evolução lhe diz como tratar o tigre racionalmente, isto é, admirando-lhe as listras e evitando-lhe as garras.

Se você quer tratar um tigre racionalmente, precisa retroceder ao jardim do Éden. Pois o obstinado lembrete continuava a repetir-se: apenas o sobrenatural pode assumir uma visão sadia da natureza. A essência de todo panteísmo, evolucionismo e religião cósmica moderna está realmente nesta proposição: que a natureza é a nossa mãe. Infelizmente, se você considerar a natureza como mãe, vai descobrir que ela é madrasta. O ponto principal do cristianismo era este: que a natureza não é a nossa mãe: a natureza é nossa irmã. Podemos sentir orgulho de sua beleza, uma vez que temos o mesmo pai; mas ela não tem autoridade sobre nós; temos de admirá-la, não de imitá-la.


Extraído da obra: “Ortodoxia”, escrita por G. K. Chesterton (1874 – 1936).
Publicada pela editora Mundo Cristão, sob ISBN: 978-8543302751.


Notas da editoria:

Imagem de capa: “The Laughing Philosopher, G. K. Chesterton”, por Galbraith O’Leary.



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