“Somente a curiosidade não envelhece conosco e fica sempre criança.”
Emanuel Wertheimer (1846 – 1916)
Para se captar a verdadeira razão psicológica da popularidade das histórias de detetive, precisamos nos livrar do mero palavrório. Não é verdade, por exemplo, que a multidão prefira a má à boa literatura, aprovando as histórias de detetives porque são ruins. A mera ausência de sutileza artística não torna um livro popular. O Guia Ferroviário de Bradshaw tem alguns lampejos de humor psicológico, mas nem por isso é lido às gargalhadas em tardes de inverno. Se as histórias de detetive causam mais rebuliço que os guias ferroviários, na certa é por serem artisticamente mais refinadas.
Muitos bons livros, afortunadamente, têm sido populares; e muitos livros ruins, ainda mais afortunadamente, têm sido impopulares. Decerto uma boa história de detetive acabará sendo mais popular que uma ruim. O problema neste caso é que muitas pessoas nem se dão conta da existência das boas histórias de detetive; para elas, é o mesmo que falar de um diabo do bem. Escrever um conto sobre um assalto é, a seus olhos, um modo espiritual de cometê-lo. Isso é natural no que toca às pessoas de nervos frágeis; deve-se dizer, porém, que várias histórias de detetive narram crimes tão espetaculares quanto as peças de Shakespeare.
Entre uma boa história de detetive e uma má, porém, há tantas diferenças — ou até mais — quanto as há entre um bom e um mau épico. Não apenas o conto de detetive é uma forma de arte perfeitamente legítima, mas também ele apresenta certas vantagens reais e bem definidas enquanto causa de bem-estar público.
O primeiro valor fundamental dessas histórias está nisto: ela é a mais antiga e até agora única forma de literatura popular na qual se expressa algo da poesia da vida moderna. Os homens viveram entre montanhas robustas e florestas imemoriais por eras antes de se darem conta do caráter poético dessas coisas; pode-se com algum acerto prever que alguns dos nossos descendentes verão nas chaminés dignidade tão grande quanto nos picos das montanhas, e terão os postes de luz por tão antigos e naturais quanto as árvores. Por retratar a cidade como algo inóspito e visível, as histórias de detetive têm a mesma dignidade que a Ilíada possuía. Ninguém deixará de notar que naquelas histórias o herói ou investigador atravessa Londres com algo da liberdade de um príncipe em um conto de fadas, e que no curso dessa jornada incerta o ônibus que passa ganha as cores primitivas de um navio das fadas. As lâmpadas da cidade começam a cintilar como incontáveis olhos de duendes, uma vez que são guardiões de um segredo, mesmo que indecoroso, que é conhecido do escritor mas não do leitor. Cada volta da estrada é como um dedo que aponta para ele; cada horizonte fantástico recortado contra as chaminés parece louca e debochadamente assinalar a resolução do mistério.
Captar a poesia de Londres não é pouco. Uma cidade é, para ser preciso, mais poética do que o campo – pois a Natureza é um caos de forças inconscientes, ao passo que a cidade é um caos de forças conscientes. A coroa da flor ou o padrão desenhado pelo líquen podem ou não ser símbolos significativos. Não há, entretanto, pedra na rua e tijolo na parede que não sejam símbolos deliberados – o recado de um homem, tanto quanto um telegrama ou um cartão postal. A mais apertada das ruas possui, em cada dobra e cada distorção intencionais, a alma do homem que a construiu, e que pode há muito estar na cova. Cada tijolo representa um hieróglifo tão humano como os esculpidos em Babilônia
Tudo que tenda a dar relevância – mesmo que sob a guisa fantástica de um Sherlock Holmes — ao encanto das miudezas da civilização, e a enfatizar o imperscrutável caráter humano de telhas e cascalhos, é algo positivo. É coisa boa que o homem médio contraia o hábito de olhar com a imaginação para dez homens na rua, mesmo que seja com o intuito de pescar se o décimo primeiro será um notório ladrão. Podemos ter o sonho de que se possa desvelar outro e maior romance londrino, em que as almas dos homens vivem aventuras mais estranhas que os corpos, e sonhar ser mais árduo e emocionante caçar as virtudes dos homens que seus crimes. Mas, uma vez que os grandes autores (com a admirável exceção de Stevenson) recusam-se a discorrer a respeito dessa situação arrebatadora — quando os olhos da grande cidade, como os de um gato, começam a flamejar no escuro —, temos de nos voltar à literatura popular, a qual, em meio ao burburinho da pedanteria e do preciosismo, nega-se a considerar o presente como prosaico e o comum como lugar-comum. A arte popular, em todas as épocas, interessou-se nas maneiras contemporâneas e nos seus costumes; vestia as gentes em torno da Crucifixão com vestes do povo florentino ou de burgueses de Flandres. No último século, os atores costumavam encenar Hamlet com perucas polvilhadas e babados.
A distância a que estamos agora de ter a mesma convicção na poesia da vida e dos costumes nossos pode ser medida facilmente por quem tente imaginar a seguinte cena: Alfredo, o Grande, usando calças curtas de turista ao deixar queimar os bolos, ou uma performance de Hamlet em que o príncipe aparece de sobretudo e com uma fita crepe no chapéu. No entanto, este impulso de olhar para trás, de imitar a esposa de Ló, não poderia durar para sempre. Uma literatura rude e popular, que versasse sobre o caráter das cidades modernas, teria de por força surgir. E surgiu na forma das populares histórias de detetive, rústicas e arejadas como as Baladas de Robin Wood.
Por G. K. Chesterton (1874 – 1936).
Excerto da obra: The Defendant. Tradução de Mário Lucas Carbonera.
Publicado originalmente no website da Sociedade Chesterton Brasil, em 3 de maio de 2021.
Nota da editoria:
Imagem da capa: “Sherlock Holmes”, por Jama Jurabaev.
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