“Dogma não significa ausência de pensamento, mas sim o fim do pensamento.”,
G. K. Chesterton (1874 – 1936).
No que se refere a essas coisas pré-históricas, a ciência é fraca de uma forma que quase passou despercebida. A ciência cujas maravilhas modernas todos nós admiramos obtém seu sucesso mediante o crescimento incessante de seus dados. Em todas as invenções práticas, na maioria das descobertas naturais, ela sempre pode aumentar as provas pela experimentação. Mas ela não pode fazer o experimento de criar homens; nem mesmo de observar para ver o que os primeiros homens criam. Um inventor pode avançar passo a passo na construção de um aeroplano, mesmo que esteja fazendo suas experiências com paus e peças metálicas no fundo do quintal. Mas no fundo do quintal ele não consegue observar a evolução do Elo Perdido. Se ele houver cometido um erro em seus cálculos, o avião sempre o corrigirá espatifando-se no chão. Mas se ele houver cometido um erro sobre o hábitat arbóreo de seu ancestral, ele não poderá ver seu ancestral arbóreo despencando da árvore. Ele não pode manter o homem das cavernas como um gato no quintal e observá-lo para ver se ele realmente pratica o canibalismo ou se abduz a companheira segundo os princípios do casamento por captura. Ele não pode manter uma tribo de homens primitivos como uma matilha de cães e observar até que ponto eles são influenciados pelo instinto de rebanho. Se vir uma ave particular comportando-se de modo particular, ele pode pegar outras aves e observar se elas se comportam daquele modo; mas se encontrar um crânio, ou um pedaço de crânio num buraco de uma colina, não pode multiplicá-lotransformando-o numa visão do vale de ossos. Lidando com um passado que desapareceu quase por inteiro, ele pode apenas orientar-se pela evidência e não por experimentos. E praticamente não há evidência, nem que seja apenas comprobatória. Assim, embora a maior parte da ciência se mova numa espécie de curva, sofrendo constantes correções por novas provas, essa ciência lança-se no espaço numa linha reta que não é corrigida por nada. Mas o hábito de formular conclusões, como de fato podem ser formuladas em campos mais frutíferos, está tão arraigado na mentalidade científica que a ciência não consegue deixar de falar desse jeito. Ela fala da ideia sugerida por um pedaço de osso como se fosse algo semelhante ao aeroplano que no fim acaba sendo construído a partir de um monte de pedaços de metal. O problema do catedrático da pré-história é que ele não pode criar seus pedaços. O maravilhoso e triunfante aeroplano é feito a partir de cem erros. O pesquisador de origens só pode cometer um erro e ater-se a ele.
Nós falamos com muita propriedade da paciência da ciência; mas nesse departamento seria mais apropriado falar da impaciência da ciência. Devido à dificuldade descrita anteriormente, o teórico tem uma pressa exagerada. Temos uma série de hipóteses tão apressadas que podem muito bem ser chamadas de fantasias, e elas não podem de modo algum ser corrigidas ulteriormente pelos fatos. O antropólogo mais empírico nesse ponto é tão limitado quanto um antiquário. Ele pode apenas ater-se a um fragmento do passado e não tem como aumentá-lo para o futuro. Ele só pode agarrar seu fragmento de fato, quase como o homem primitivo agarrava seu fragmento de sílex. E na verdade ele o usa praticamente do mesmo modo e pela mesma razão. É sua ferramenta e sua única ferramenta. É sua arma e sua única arma. Com frequência ele o brande com o fanatismo que em muito excede qualquer outra manifestação dos cientistas quando conseguem coletar mais fatos pela experiência e até acrescentar novos fatos pela experimentação. Às vezes o catedrático com seu osso torna-se quase tão perigoso quanto um cachorro com o seu. E o cachorro pelo menos não deduz de seu osso uma teoria provando que a humanidade está involuindo para cachorro — ou que ela evoluiu de um deles.
• • •
A civilização humana é mais antiga que os registros humanos. Essa é a maneira sensata de afirmar nosso relacionamento com essas realidades remotas. A humanidade deixou exemplos de suas outras artes anteriores à arte da escrita; ou pelo menos antes de qualquer escrita que conseguimos ler. Mas não há dúvida de que as artes primitivas eram artes; e é de todos os modos provável que as civilizações primitivas foram civilizações. O homem deixou uma pintura da rena, mas não deixou uma narrativa de como ele a caçava. Portanto, o que dizemos sobre ele é hipótese e não história. Mas a arte que ele praticou era muito artística; seu desenho era muito inteligente, e não há motivo para duvidar de que sua história da caçada seria muito inteligente, só que se existir ela não é inteligível. Resumindo, o período pré-histórico não significa necessariamente o período primitivo no sentido de período bárbaro ou animalesco. Não significa o tempo antes da civilização ou o tempo antes das artes e ofícios. Significa apenas o tempo antes de quaisquer narrativas coerentes que conseguimos ler. Isso faz de fato toda a diferença prática entre lembrança e esquecimento; mas é perfeitamente possível que tenham existido civilizações de todos os tipos, bem como barbáries de todos os tipos, que foram esquecidas. De qualquer modo, tudo indica que muitos desses estágios sociais esquecidos ou semiesquecidos eram muito mais avançados do que vulgarmente hoje se imagina.
Escrito por G. K. Chesterton (1874 – 1936).
Excertos do segundo capitulo da obra: “O homem eterno”.
Obra publicada pela Editora Mundo Cristão, sob ISBN: 978-85-7325-893-6.
Nota do editor:
A imagem associada a esta postagem ilustra recorte de obra criada pela pintora e escultura americana Caitlin Connolly.
Leia outros artigos sobre G. K. Chesterton, ou escritos por ele mesmo:
Paradoxos do cristianismo
Por G. K. Chesterton
O espirito de Natal
Por G. K. Chesterton
Uma defesa das histórias de detetive
Por G. K. Chesterton
Três excertos da obra “Ortodoxia”, de Chesterton
Por G. K. Chesterton
G. K. Chesterton e o senso de realidade
Por Rodrigo Gurgel
Ortodoxia, de Chesterton
Por Fabio Blanco
Viagem de um ao memo lugar
Por G. K. Chesterton
Autoconfiança dos patifes é a origem da obra “Ortodoxia” de Chesterton
Por G. K. Chesterton
Tremendas trivialidades
Por G. K. Chesterton
Um pedaço de giz
Por G. K. Chesterton
Catedráticos e homens pré-históricos
Por G. K. Chesterton
Conhecendo a Idade Média
Por G. K. Chesterton
Doentes pacientes; pecadores impacientes
Por G. K. Chesterton