G. K. Chesterton e o senso de realidade

Obra: "Taxi-Jaune" (2019), por Gilles Clairin.

A razão é, em si mesma, uma questão de fé.
É um ato de fé afirmar que nossos pensamentos têm alguma relação com a realidade.
G. K. Chesterton (1874 – 1936)



Raros escritores têm o dom que Jorge Luis Borges percebeu, com acerto, no autor de Ortodoxia: “A obra de Chesterton é vastíssima e não contém uma só página que não ofereça uma felicidade”. Entretanto, mais que satisfação ou alegria, a crônica que publico abaixo encerra, inclusive, uma questão de fundo gnosiológico: a de que as coisas são reais; e isso independe das nossas sensações. Certeza que produz conseqüências infindáveis não só para o exercício da filosofia, mas para a criação literária e, principalmente, para o nosso anônimo dia-a-dia. Ao final dessa divertida crônica, quando Chesterton finalmente desce do táxi, ele pode repetir, com Ettiénne Gilson: “O conhecimento é a unidade vivida e experimentada de um entendimento e de algo real apreendido”.

“O taxista extraordinário” faz parte do volume Tremendas trivialidades, publicado, no Brasil, pela Editora Ecclesiae:

O taxista extraordinário


De tempos em tempos apresento nesta coluna de jornal a narração de incidentes que realmente ocorreram. Não quero insinuar que neste aspecto ela seja única entre as colunas de jornal. Só quero dizer que percebi que meu objetivo era melhor expresso por uma parábola prática da vida diária do que por qualquer outro método; portanto, proponho-me a narrar o incidente do taxista extraordinário, que ocorreu comigo há apenas três dias e que, insignificante como parece ser, provocou em mim um momento de genuína emoção, beirando o desespero.

No dia em que encontrei o estranho taxista, estivera almoçando em um pequeno restaurante em Soho1 na companhia de três ou quatro de meus melhores amigos. Meus melhores amigos são todos céticos insondáveis ou crentes incontroláveis, de forma que nossa discussão do almoço enveredou pelas mais extremas e terríveis idéias. E toda a discussão chegou afinal a isto: que a questão é se um homem pode ter certeza de alguma coisa. Penso que sim, porque (como disse a meu amigo, brandindo furiosamente uma garrafa vazia) se for intelectualmente impossível ter certeza, o que é essa certeza que é impossível ter? Se nunca tive a experiência de algo como a certeza, não posso nem sequer dizer que uma coisa seja incerta. Da mesma forma, se nunca tive a experiência do verde não posso nem mesmo dizer que meu nariz não é verde. Até onde sei, ele pode ser tão verde quanto for possível se eu realmente não tiver nenhuma experiência do verdor. Assim, gritamos uns com os outros e fizemos a sala estremecer, porque a metafísica é a única coisa totalmente emocional que existe. E a diferença entre nós era muito profunda, porque era uma diferença com relação ao objeto daquilo que se chama abertura de mente. Pois meu amigo dizia que abria seu intelecto como o sol abre as folhas de uma palmeira, abrindo pela abertura em si, abrindo infinitamente e para sempre. Mas eu disse que abria meu intelecto como abria minha boca, para fechá-la novamente em algo sólido. Estava fazendo exatamente isso naquele momento. E como corretamente apontei, pareceria uma tolice notável se continuasse abrindo minha boca infinitamente, para todo o sempre.

Quando a discussão terminou, ou ao menos quando foi interrompida (pois nunca terminará), saí com um de meus companheiros, que na confusão e relativa insanidade de uma Eleição Geral havia de alguma forma tornado-se membro do Parlamento, e fui com ele de táxi da esquina de Leicester Square2 até a entrada dos membros da Câmara dos Comuns, onde a polícia recebeu-me com uma tolerância incomum. Se pensaram que ele era meu guarda-costas ou que eu era o dele é uma discussão que ainda persiste entre nós.

Capa da obra: “Tremendas trivialidades”. Autor: G. K. Chesterton (1874 – 1936). Tradutor: Mateus Leme. Publicado pela Editora Ecclesiae, sob ISBN: 9788563160218.Nesta narrativa é necessário preservar os detalhes com a maior exatidão possível. Após deixar meu amigo na Câmara, tomei o táxi por mais algumas centenas de metros para um escritório que precisava visitar na rua Victoria3. Saí do carro e paguei ao taxista mais do que devia. Ele olhou para o dinheiro, mas não com a dúvida carrancuda e disposição geral de impacientar-se não de todo desconhecida entre taxistas normais. Mas este não era um taxista normal, talvez nem mesmo humano. Ele contemplou o dinheiro com um espanto lento e infantil, claramente genuíno. “O senhor percebeu”, disse-me, “que me deu apenas 1 shilling e 8 pence?” Retruquei, com alguma surpresa, que de fato sabia. “Agora, sabe, senhor”, disse ele de uma maneira bondosa, simpática, razoável, “esta não é a tarifa desde Euston4”. “Euston”, repeti vagamente, pois o termo naquele momento soou-me como China ou Arábia. “O que Euston tem a ver com isso?” “O senhor me chamou logo ao lado da estação de Euston”, disse o homem com impressionante precisão, “e então o senhor disse — ”. “Do que, em nome do Tártaro, você está falando?”, eu disse com paciência cristã. “Entrei no seu táxi na esquina sudoeste de Leicester Square”. “Leicester Square”, exclamou ele, extravasando uma espécie de torrente de escárnio, “mas se nós nem mesmo passamos perto de Leicester Square hoje. O senhor me chamou fora da estação de Euston, e o senhor disse — ”. “Você está louco, ou estou eu?”, perguntei com calma científica. Olhei para o homem. Nenhum taxista ordinário e desonesto pensaria em criar uma mentira tão sólida, colossal e criativa. E esse homem não era um taxista desonesto. Se alguma vez existiu uma face humana séria e simples e humilde, e com grandes olhos azuis protraindo como os de um sapo, se alguma vez (em resumo) houve uma face humana que fosse tudo o que uma face humana deveria ser, era a face daquele ressentido e respeitoso taxista. Perscrutei a rua de um lado ao outro; um crepúsculo estranhamente escuro parecia aproximar-se. E por um segundo o velho pesadelo do cético pôs o dedo na minha ferida. O que era a certeza? Alguém podia ter certeza de qualquer coisa? Céus! E pensar na rotina monótona dos céticos que insistem em perguntar se há uma vida futura. A excitante questão do verdadeiro ceticismo é se possuímos uma vida passada. O que é o minuto passado, do ponto de vista racionalista, senão uma tradição e uma foto? A escuridão aumentou na rua. O taxista me deu calmamente os mais elaborados detalhes dos gestos, palavras, da complexa mas consistente seqüência de ações que eu havia tomado desde aquela notável ocasião em que o chamara ao lado da estação de Euston. Como eu sabia (diriam meus amigos céticos) que não o havia chamado em Euston? Eu estava firme na minha asserção; ele estava igualmente firme na sua. Ele era obviamente um homem tão honesto quanto eu, e membro de uma profissão muito mais respeitável. Naquele instante o universo e as estrelas estiveram por apenas um fio de perder o equilíbrio, e os alicerces da terra se moveram. Mas pela mesma razão pela qual acredito na democracia, pela mesma razão pela qual acredito na liberdade, pela mesma razão pela qual acredito no caráter fixo da virtude, razão essa que só pode ser expressa pela afirmação de que eu escolho não ser um lunático, continuei a acreditar que este honesto taxista estava errado, e repeti-lhe que na realidade o havia chamado na esquina de Leicester Square. Ele começou, com a mesma evidente e ponderada sinceridade, “O senhor me chamou na saída da estação de Euston, e o senhor disse…”

E naquele momento sua face sofreu uma espécie de assustada transfiguração de puro assombro, como se tivesse sido iluminada por dentro com uma lâmpada. “Puxa, perdoe-me, senhor”, disse ele. “Perdoe-me. Perdoe-me. O senhor me chamou em Leicester Square. Lembrei-me agora. Perdoe-me”. E com isso aquele homem espantoso brandiu seu chicote em seu cavalo com um estalido cortante e foi embora sacolejando. Toda essa conversa, juro perante a bandeira de São Jorge, é estritamente verdade.

Contemplei o estranho taxista enquanto sumia na distância e no nevoeiro. Não sei se estava certo em imaginar que, embora sua face parecesse tão honesta, havia nele algo sobrenatural e demoníaco quando visto de costas. Talvez tivesse sido enviado para tentar minha adesão àquelas sanidades e certezas que defendera mais cedo naquele dia. De qualquer forma agradou-me lembrar que meu senso de realidade, embora tivesse balançado por um instante, permaneceu de pé.


Escrito por Rodrigo Gurgel.
Publicado originalmente em 30 de junho de 2012 no website do autor.


Notas:

  1. Região boêmia do West End, área do centro-oeste de Londres que concentra espetáculos teatrais e parte da vida noturna da cidade. Subir
  2. Praça localizada no West End, um pouco a sudeste de Soho. Subir
  3. Importante rua que liga a região do Palácio de Buckingham ao Parlamento. Subir
  4. Estação ferroviária e avenida vários quarteirões ao norte de Soho, próximas à Biblioteca Britânica. Subir

Notas da editoria:

Imagem da capa: “Taxi-Jaune” (2019), por Gilles Clairin.




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