A terrível necessidade da tribulação

O sofrimento acompanha sempre uma inteligência elevada e um coração profundo.
Os homens verdadeiramente grandes devem, parece-me, experimentar uma grande tristeza.”,
Fiódor Dostoiévski (1821 – 1881): escritor russo.



Estou progredindo ao longo da estrada da vida em minha condição usual, satisfeita e decaída, absorvido num encontro agradável com amigos marcado para amanhã ou um pouco de trabalho que estimula minha vaidade hoje, um feriado ou um livro novo, quando de repente uma pontada no abdome que pode indicar doença séria, ou uma notícia nos jornais ameaçando o mundo de destruição, faz ruir o meu castelo de cartas. Sinto-me a princípio vencido, com todas as minhas pequenas alegrias desfeitas como brinquedos destroçados. A seguir, devagar e com relutância, pedaço a pedaço, tento enquadrar-me no estado de espírito em que deveria sempre estar. Chamo minha atenção para o fato de que todos esses brinquedos não tinham o propósito de apossar-se do meu coração, que meu bem real está num outro mundo e que meu único e verdadeiro tesouro é Cristo. E, talvez, pela graça de Deus, venha a ter êxito, e durante um dia ou dois me tomo uma criatura que depende conscientemente de Deus e que extrai a sua força das fontes certas. Mas no momento em que a ameaça desaparece, toda a minha natureza salta de volta aos brinquedos: fico até ansioso, que Deus me perdoe, para banir de minha mente a única coisa que me sustentou sob a ameaça, porque ela está agora associada à miséria daqueles poucos dias.

Fica então muito clara a terrível necessidade da tribulação. Deus me teve apenas por quarenta e oito horas e mesmo assim à força de ameaças, de tirar de mim tudo o mais. No momento em que Ele embainha a espada, me comporto como um cachorrinho quando o odiado banho acaba – sacudo-me o melhor que posso e corro a recuperar minha confortável sujeira, se não for no monturo mais próximo, pelo menos no primeiro canteiro de flores. É por isso que as tribulações não podem cessar até que Deus nos veja transformados ou julgue que nossa transformação é agora impossível.



Capa da obra da obra: “O problema do sofrimento”, escrita por: C. S. Lewis (1898 – 1963). Publicado pela Editora Vida, sob ISBN: 8573678518.A tendência deste ou daquele novelista ou poeta pode representar o sofrimento como absolutamente negativo em seus efeitos, como se produzisse e justificasse toda espécie de maldade e brutalidade no sofredor. E, naturalmente, a dor, assim como o prazer, podem ser recebidos dessa forma: tudo o que é dado a uma criatura com livre-arbítrio deve ter dois gumes, não pela natureza do doador ou do que foi dado, mas pela natureza do recipiente. Os resultados negativos da dor podem ser multiplicados se os observadores ensinaram constantemente aos que estão sofrendo que esses são exatamente os resultados certos e nobres que devem manifestar. A indignação quanto ao sofrimento de outrem, embora seja uma paixão generosa, precisa ser bem controlada objetivando não roubar a paciência e humildade dos que sofrem e semear a ira e o cinismo em seu lugar.

Não estou, porém, convencido de que o sofrimento, se lhe for poupada tal indignação intrometida e vicária, tenha qualquer tendência natural para produzir tais males. Não achei que as trincheiras estivessem mais cheias de ódio, egoísmo, rebelião e desonestidade do que qualquer outro lugar. Vi uma grande beleza de espírito em alguns indivíduos que muito sofreram. Vi homens, que no correr dos anos se tornaram melhores e não piores, e vi a última doença produzir tesouros de força e mansidão por parte de alguns que bem pouco prometiam.




Se o mundo for de fato um “vale de formação de almas”, ele parece em termos gerais estar fazendo o seu trabalho.


Extraído da obra: “O problema do sofrimento, escrita por: C. S. Lewis (1898 – 1963).
Publicado pela Editora Vida, sob ISBN: 8573678518.


Notas da editoria:

  • O título desta postagem (“A terrível necessidade da tribulação”) foi baseado no segundo parágrafo deste excerto. Não faz parte de nenhuma epígrafe do livro.
  • O trecho foi obtido do capítulo sexto, intitulado: “O sofrimento humano” (página 52).
  • A imagem associada a esta postagem ilustra recorte da obra: “The angel of death striking a door during the plague of Rome”, criada em 1869 pelo pintor francês Jules Elie Delaunay (1828 – 1891).

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