A verdadeira história da escravidão (Parte II)

Gravura: "Cena do canibalismo" (1592), de Théodore de Bry (1528 - 1598).

Para acessar a primeira parte, clique aqui.



As palavras de Jorge Bergoglio no Canadá causaram muita sensação.1 Vale a pena recordar a verdadeira história da escravidão e da guerra contra ela nas Américas.

Quando Colombo lá chegou, as Américas eram praticamente despovoadas, habitadas por povos atualmente em fase de beatificação, mas que, na verdade, dedicavam-se sistematicamente à guerra, à escravidão e a sacrifícios humanos de uma ferocidade apocalíptica. O canibalismo era muito frequente, tanto para fins rituais quanto alimentares. A velocíssima conversão da América do Sul deveu-se também à crueldade dos regimes precedentes, dos quais o povo estava feliz em se libertar. A população era muito escassa, e partes enormes do território eram desabitadas, muito por conta da beligerância permanente entre vários grupos. Entre os mais ferozes estavam os iroqueses, conhecidos pelo hábito de comer os condenados cozidos, mas ainda vivos.2

A evangelização das Américas é bem contada por Agostino Nobile, no livro Quello che i cattolici devono sapere — almeno per evitare una fine ridicola (“O que os católicos devem saber — ao menos para evitar um fim ridículo”), publicado em 2015, cuja leitura é cada vez mais urgente, talvez até já demasiado atrasada, visto que os católicos já estão mesmo se aprofundando no ridículo.

Capa da obra: "Quello che i cattolici devono sapere. Almeno per evitare una fine ridicola", de Agostino Nobile.“Ninguém se preocupou mais com as almas dos seus novos súditos do que Isabel de Castela (1451 — 1504), que, juntamente com o Papa Paulo III, proibiu a escravidão e os abusos contra os índios. Já em 1478, a rainha católica havia libertado os escravos das colônias nas Canárias, e a proibição da escravidão dos indígenas do Novo Mundo foi respeitada por seus sucessores, encorajando-se o matrimônio entre seus súditos e os índios. À exceção da região do Caribe, da Argentina e do Brasil (onde, desde o século XVIII, os laicistas e a maçonaria tiveram o maior impacto), os países de língua latina são povoados por uma maioria ameríndia e mestiça, enquanto no norte protestante quase não existem mais índios.

A altíssima porcentagem de negros presentes nos países maçônicos e protestantes do norte prova — se ainda fosse preciso — que o tráfico de escravos nos países da América do Norte foi extenso a ponto de alterar a estrutura social e cultural. Não devemos nos esquecer, porém, de que a história das Américas não começa com a invasão dos europeus: naquelas terras, as tribos locais sempre se massacraram umas às outras, como frequentemente acontecia e acontece em todas as culturas tribais. Os missionários cristãos, ao contrário dos demais colonizadores, levaram a mensagem que enobrece o homem, extirpando daquelas culturas as tradições que queriam o homem guerreiro, escravo, vítima sacrificial dos deuses. Os incas e os astecas, por exemplo, realizavam sacrifícios humanos em massa. Para cativar a benevolência dos deuses, chegaram a jogar de suas pirâmides milhares de homens, mulheres e crianças escravizados.

O teólogo espanhol Francisco de Vitória (1492 — 1546), em defesa dos índios, escreveu uma carta de direitos humanos que vale a pena relatar:

  1. Os homens são livres por nascimento;
  2. Pela lei natural, ninguém é superior aos outros;
  3. A criança não vem à existência em função dos outros, mas de si mesma;
  4. É melhor renunciar ao próprio direito do que violar o dos outros;
  5. A propriedade privada é lícita ao homem, mas ninguém é tão proprietário que não deva, às vezes, compartilhar seus bens com os outros. Em caso de extrema necessidade, todas as coisas são comuns;
  6. Os dementes perpétuos — que não fazem e não há esperanças de que venham a poder fazer uso da razão — são sujeitos de direito e podem ser proprietários;
  7. Ao condenado à morte é lícito fugir, porque a liberdade se equipara à vida;
  8. Se o juiz, não respeitando a ordem da lei, obtém a confissão do réu por meio de tortura, não pode condená-lo, porque agindo assim não se comportou como juiz;
  9. Não se pode levar à morte alguém que não tenha sido julgado e condenado legitimamente;
  10. Cada nação tem direito de governar-se a si mesma, e pode escolher o regime político que quiser, mesmo quando não for o melhor;
  11. Todo o poder do rei vem da nação, porque esta é livre por princípio;
  12. O orbe inteiro, que de certa maneira constitui uma república, tem o poder de dar leis justas e convenientes a toda a humanidade;
  13. Não é lícita uma guerra que traga às nações um mal bem maior do que as vantagens que se pretende obter por meio dela, sejam quais forem as razões e causas pelas quais se creia que seja justa;
  14. Se um súdito constata a injustiça de uma guerra, pode recusar-se a participar dela, mesmo contra o mando do príncipe;
  15. O homem não é lobo para o homem, mas é, antes de tudo, homem.”

Se analisamos os textos, podemos perceber que a escravidão foi um fenômeno totalmente atroz fora do cristianismo, mas muito menos feroz dentro dele, e também aqui devemos fazer uma distinção entre protestantismo e catolicismo. A condenação da escravidão teve origem no catolicismo. Seguramente existiram escravistas dentro do catolicismo, mas as linhas teóricas do antiescravagismo nasceram ali. No Canadá, Bergoglio se esqueceu da verdade histórica, das missões católicas que criaram escolas, hospitais e vilas onde finalmente não era mais permitida a tortura e não era mais permitida a escravidão, normalmente praticada pelos iroqueses e por outros grupos étnicos, exatamente como não era mais permitido o estupro étnico de mulheres de outras tribos escravizadas.

Os missionários católicos pagaram com a vida e com a dor: foram comidos cozidos, ainda vivos (os iroqueses assavam o prisioneiro vivo, depois cortavam as partes externas de seu corpo já cozido e as comiam diante de seus olhos, enquanto cozinhavam o resto). Essa história é contada pelo padre Celestino Testore, no livro I santi martiri canadesi (“Os santos mártires canadenses”), de 1941. No Canadá, Bergoglio não recordou esses mártires e as inúmeras vidas que salvaram, e pediu desculpas por eventos jamais ocorridos.

Obra: "The Slave Market" (1886), por Gustave Clarence Rodolphe Boulanger (1824 - 1888). Tamanho Pequeno.Aquela conversa das valas comuns de crianças é uma lenda negra já clamorosamente desmentida, visto que nem um único cadáver foi jamais exumado. As crianças eram retiradas de suas famílias pelo Estado canadense — certamente não pelos padres católicos, que jamais separaram as crianças de suas famílias —, Estado este que, depois, as confiava aos orfanatos católicos, pois não pretendia ocupar-se delas. O historiador Jacques Rouillard, professor da Faculdade de História da Universidade de Montreal, publicou, no dia 11 de janeiro, no portal canadense Dorchester Review, um longo artigo em que demonstra não haver quaisquer sepulturas irregulares ou de massa, mas simples cemitérios para estudantes e professores. As causas de morte das crianças, documentadas, são a tuberculose, a influenza e, mais raramente, acidentes, e estão absolutamente adequadas às estatísticas sanitárias daquele tempo, completamente comparáveis à taxa de mortalidade dos órfãos ingleses, nos orfanatos ingleses desses mesmos anos, muito inferiores à taxa de mortalidade dos orfanatos soviéticos e dos romenos sob Ceauşescu, e enormemente inferiores ao percentual de mortos nos orfanatos chineses, que eram chamados dying rooms, “quartos da morte”, enquanto milhares e milhares de crianças foram salvas através dos séculos e continentes nos orfanatos católicos.

Em 2022, o professor Tom Flanagan e o magistrado Brian Gesbrecht, na Dorchester Review, com o título The false narrative of the residential schools burials (“A falsa narrativa das covas das escolas residenciais”), reafirmam não haver vestígios de um único aluno morto nos 113 anos de história das escolas residenciais católicas. Por que Bergoglio se desculpou por eventos jamais comprovados? A civilização cristã católica foi o primeiro baluarte contra a escravidão, o genocídio e a exploração extrema do homem pelo homem. Uma vez abatida, cancelada ou reduzida a um cachorrinho na coleira da Nova Ordem Mundial, a receber ordens de Davos, não haverá mais baluartes. Fomos nós os mestres da ciência, da técnica, da filosofia e das artes, os paladinos da guerra contra a escravidão, aqueles que falaram sobre a dignidade humana, não porque fôssemos melhores do que os outros, mas porque tivemos extraordinária sorte em fundir a espiritualidade bíblica evangélica, a filosofia grega, o direito romano e até mesmo a paixão dos bárbaros.

Foi um milagre. Uma vez que tenhamos sido aniquilados, destruídos, domesticados, substituídos, o conceito de dignidade humana não mais existirá, e a escravidão, que já está efervescendo escondida em palavras muito mais brandas, como gravidez para os outros e eutanásia sem consentimento, explodirá como nunca antes.

Os milagres não se repetirão. A Providência não intervém uma segunda vez, depois que seus dons são jogados fora.


Por Silvana de Mari
Tradução: Daniel Marcondes

Artigo original disponível em
https://www.silvanademaricommunity.it/2022/08/09/4998/.


Notas:

  1. Em julho deste ano, Francisco esteve no Canadá, diante de Justin Trudeau e representantes de índios nativos da região, para, mais uma vez — seguindo à risca a escola de João Paulo II — implorar perdão por coisas que a Igreja nunca fez, reafirmando algumas das piores falsificações históricas já fabricadas contra ela (entre as quais o mito dos internatos, do qual a autora falará adiante). Em um de seus discursos, proferido em espanhol, disse: “Pido perdón por la manera en la que, lamentablemente, muchos cristianos adoptaran la mentalidad colonialista de las potencias que oprimieron a los pueblos indígenas. Estoy dolido. Pido perdón, en particular, por el modo en el que muchos miembros de la Iglesia y de las comunidades religiosas cooperaron, también por medio de la indiferencia, en esos proyectos de destrucción cultural y asimilación forzada de los gobiernos de la época, que finalizaron en el sistema de las escuelas residenciales” (https://www.lapresse.it/vaticano/2022/07/25/il-mea-culpa-del-papa-davanti-agli-indigeni-chiedo-perdono/). Cobrado, na coletiva de imprensa do encontro, por não ter utilizado a palavra “genocídio” (!), Francisco fez questão de se explicar: “Es cierto que no utilicé la palabra porque no me vino a la mente, pero describí el genocidio y pedí perdón, perdón por esta obra que es genocida. Por ejemplo, yo también condené esto: quitar a los niños, cambiar la cultura, cambiar las mentes, cambiar las tradiciones, cambiar una raza, digamos, toda una cultura. Sí, es una palabra técnica — genocidio — pero no la utilicé porque no me vino a la mente” (todas as demais atrocidades pronunciadas nos discursos completos e homilias de Francisco, neste e em outros eventos, podem ser encontradas em sua versão oficial, em diversos idiomas, em sua página no site da Santa Sé: https://www.vatican.va/content/francesco/it.html). Julgando, porém, que aliar-se aos inimigos da Igreja para atacá-la não fosse suficiente humilhação e zombaria pública aos católicos e ao nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, o papa da Pachamama participou, de cocar na cabeça, juntamente com toda sua delegação de cardeais, de um ritual pagão de purificação. Um homem da tribo Huron “acendeu ervas com um fósforo, em uma pequena tigela, para ‘honrar’ a terra, o ar, a água e o fogo. Ele então espalhou, com uma pena, a pequena fumaça produzida, expressando sua crença de que o fogo sagrado haveria de unir tudo o que existe na criação. (…) O ancião pediu às Quatro Direções que abrissem as portas dos ancestrais e permitissem o acesso ao ‘círculo sagrado de espíritos’ [= demônios]” (https://gloria.tv/post/3gj4Vh8f7cbv4STgiWgQHAjpb). Que Santo Isaac Jogues e São João de Brébeuf, brutalmente martirizados pelos índios canadenses, implorem para nós a misericórdia de Deus. — NT Subir
  2. Para uma verdadeira e detalhada história da chegada dos europeus na América, bem como dos hábitos e práticas dos povos indígenas que lá encontraram, cf.: Iturralde, Cristián Rodrigo. 1492: fim da barbárie, começo da civilização na América. Campinas: VIDE Editorial, 2020. — NT Subir

Notas da editoria:

Imagem da capa: “Cenas de canibalismo”, gravura criada em 1592 por Théodore de Bry (1528 – 1598).


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