Acima do combate

Jovens Brasileiros do Passado

O processo de abertura que conduziu à Nova República tornou flagrante o fato de que a problemática institucional brasileira — que perdura, em última análise, desde a fundação da República — não foi resolvida, mas apenas deixada de lado. Adiada. A fina intuição política que norteou admiravelmente o processo de redemocratização do país, sem qualquer choque violento, tornou ao mesmo tempo patente que o sistema de simples improvisação está chegando ao ponto de exaustão.”, José Osvaldo de Meira Penna (1917 – 2017): diplomata e escritor brasileiro. [1]



Há pouco mais de cem anos, após a deflagração da Primeira Guerra Mundial e diante da tragédia que se abatia sobre a Europa, o escritor Romain Rolland publicou a obra cujo título serve de inspiração para este artigo. Basicamente, “Au-dessus de la mêlée” (em tradução livre: “Acima do combate”) consistiu em um apelo do autor para que as pessoas superassem uma visão de curto prazo acerca do sangrento conflito militar e se comprometessem com a reconstrução da paz necessária para manter o convívio civilizado entre os europeus.

A partir da influência de Rolland, propõe-se ao leitor desenvolver um olhar “acima do combate” político freneticamente travado no Brasil deste início de século XXI, com o objetivo de alicerçar a formação de uma nova classe pensante em nosso meio. Independentemente das vitórias e derrotas registradas nas intermináveis batalhas que se sucedem, entende-se ser necessário ampliar o número de pessoas capazes de perceberem a existência de elementos estruturais do sistema vigente que originam as reiteradas crises que vêm assolando o país.

Ao longo dos próximos parágrafos, será examinada a danosa instabilidade política observada no Brasil desde o advento da chamada “Nova República”. Entende-se que esta dificuldade para alcançar a necessária harmonia entre os poderes tem como origem o momento de elaboração da atual Constituição Federal. Dirigido especialmente aos jovens, este artigo pretende transmitir um breve panorama do ambiente social e político brasileiro de meados da década de 1980; pois descobrir de onde viemos é indispensável para entender o presente e preparar-se para o futuro.

Para compreender o contexto nos anos 80 do século passado, devemos destacar que, à época, uma das principais preocupações dos brasileiros se relacionava com a significativa deterioração das condições econômicas. O Regime Militar iniciado em 1964 realizara relevantes reformas estruturais e, aproveitando condições externas favoráveis, promovera o chamado “Milagre Econômico”. Entre os anos de 1968 e 1973, o PIB nacional cresceu, aproximadamente, 12% ao ano. Em paralelo, a inflação anual rondava os 15%. A partir de então, uma série de contingências internas e externas promoveram o desgaste do modelo.

Entre 1981 e 1983, o Brasil passou por sua maior recessão até então registrada no período pós-segunda guerra mundial. A taxa média de variação do PIB foi negativa, enquanto a inflação chegou a alcançar 130% ao ano – valor quatro vezes superior à média da década anterior. Após 1984, apesar da melhora na situação das contas externas e da recuperação do crescimento econômico, o processo inflacionário não arrefecia. Diante desse quadro, o grande fantasma que assolava a vida do brasileiro era a inflação. Em um contexto de marcado desgaste da legitimidade das forças armadas como condutoras do destino do país, as esperanças relativas à resolução de todas as mazelas foram depositadas na chamada redemocratização. Consequentemente, as expectativas se direcionaram para a classe política, alijada dos principais postos decisórios durante duas décadas.

Especificamente acerca do flagelo inflacionário, entendia-se então que o principal elemento a ser atacado era o componente inercial da inflação, provocado pela indexação generalizada dos contratos. Nesse contexto, em fevereiro de 1986, foi lançado o “Plano Cruzado”. Se bem as consequências econômicas da iniciativa tenham sido pífias, a prestidigitação do congelamento de preços – medida mais visível do plano – promoveu resultados políticos altamente satisfatórios para o partido do Presidente José Sarney. Podemos afirmar que as consequências eleitorais desse plano econômico repercutem em nosso meio até os dias atuais.

Capa da obra: "Au-Dessus de la Mèlée. 98e Édition (Histoire)"Nas eleições celebradas em todo o território nacional, em novembro de 1986, os governadores eleitos em todos os estados – exceto Sergipe –pertenciam ao PMDB. No mesmo sentido, o partido governista obteve ampla maioria em ambas as casas do congresso nacional. A partir de fevereiro de 1987, foram esses parlamentares os responsáveis por elaborar a atual Constituição Federal. Do ponto de vista da técnica jurídica, cabe ressaltar que a Assembleia Constituinte de 1987 foi convocada pela Emenda Constitucional número 26, de acordo com a Carta Constitucional de 1967 – reformada em 1969. Sendo assim – de acordo com Ives Gandra Martins – deveria ter se tratado de “Poder Constituinte Derivado” sem; portanto, a faculdade de alterar cláusulas pétreas da Constituição anterior. Tal fato não ocorreu, entendendo os legisladores de 1987 disporem de “Poder Constituinte Originário.”

O complexo e extenso processo negociador que caracterizou a elaboração da atual Constituição ilustrou claramente as falências da classe política nacional e a grande heterogeneidade camuflada sob a sigla PMDB. Herdeiro do antigo MDB, oposição ao governo militar entre 1966 e 1979, o partido manifestou significativas incoerências internas ao longo dos debates relativos à carta de 1988. Nesse sentido, cabe destacar o afastamento de um grupo de membros que veio a formar o PSDB – no qual se destacaram Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas. As divergências que deram origem à cisão dizem respeito a um ponto fundamental para a compreensão do ambiente político brasileiro desde então: a adoção do parlamentarismo ou do presidencialismo.

A Constituição promulgada em 1988 legou ao Brasil um sistema político no qual o Congresso conta com poderes quase parlamentaristas e poucas responsabilidades; ao mesmo tempo, para poder governar, o Executivo necessita barganhar com o Legislativo – principalmente mediante o uso de cargos e verbas. Trata-se de um “Presidencialismo de Coalizão.” Essa disparidade é ilustrada, por exemplo, pelo fato de que o Congresso Nacional tem, em determinadas situações, faculdades para afastar o Presidente de suas funções enquanto o Chefe de Estado não conta com o poder de dissolver o Parlamento e convocar novas eleições.

Antes mesmo da promulgação da Constituição, alguns já alertavam que o novo texto tornaria o Brasil ingovernável. No mesmo sentido, durante os trabalhos legislativos dos quais participou como senador eleito pelo Mato Grosso, Roberto Campos previa que a Constituição promoveria uma “promiscuidade” entre os poderes. Em manifestações realizadas à época, o parlamentar afirmava que, no Brasil, não haveria separação de poderes nem integração entre eles; mas uma “invasão entre os poderes.” Somado a este difícil contexto, a ausência de mecanismos de equilíbrio para obter a necessária estabilidade colocaria o Chefe de Estado constantemente diante da ameaça do impeachment – fato amplamente comprovado desde então.

Cabe destacar que, durante a vigência da Carta Constitucional de 1988, houve pedidos de impeachment contra todos os Presidentes da República. Inclusive políticos sobejamente afagados pela imprensa e que contavam com sólidas estruturas partidárias não escaparam desse fantasma. Nem mesmo José Sarney, cuja Presidência se desenrolou durante a elaboração da Carta Magna, evitou ser indiciado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Apenas promulgada a Constituição, o maranhense foi acusado de crimes de responsabilidade; entretanto, a denúncia acabou sendo arquivada. Os dois casos de afastamento registrados até hoje ilustram o poder de uma “intricada estrutura impessoal e invisível”, capaz de prevalecer sobre o resultado das urnas.

Outro ponto que merece atenção na análise da evolução do panorama político brasileiro recente é o elevado número de pessoas que não se vê representado pelos candidatos apresentados nas eleições presidenciais. Examinando os resultados das apurações eleitorais dos últimos três pleitos, observa-se que, aproximadamente, trinta milhões de eleitores não manifestaram sua predileção por nenhuma das opções disponíveis no segundo turno das eleições realizadas em 2018, 2014 e 2010. Somado à complexa estrutura política existente e seu emperrado funcionamento, este fato assinala o esgotamento do sistema representativo criado em nosso país pela classe política atuante na década de 1980.

Diante do exposto, percebe-se que a árdua tarefa de promover a renovação da ação política no Brasil será realizada, inexoravelmente, em paralelo a um inevitável desgaste do sistema atual. Nesse sentido, a formação de intelectuais que participem do debate público e, principalmente, de quadros capazes de sustentar futuros governos dissociados das estruturas partidárias hoje existentes são atividades prioritárias neste momento. Certamente, esse empreendimento demandará um grande esforço por parte dos interessados.


Escrito por Silvio Fragoso.
O autor é Mestre em Direito e Tradutor Público.


Referências:

  1. ALMEIDA, Paulo Roberto de. A Constituição contra o Brasil – Ensaios de Roberto Campos sobre a Constituinte e a Constituição de 1988. 1ª Ed. São Paulo. LVM Editora. 2018. 448 p.
  2. BRAGANÇA, Luiz Philippe de Orléans e. Por que o Brasil é um país atrasado. 2ª Ed. São Paulo: Maquinaria Studio, 2019. 287 p.
  3. GREMAUD, Amaury Patrick. Economia Brasileira Contemporânea. 7ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012. 659 p.
  4. MARTINS, Ives Gandra. O que é Parlamentarismo Monárquico. Disponível em: https://gandramartins.adv.br/livro/o-que-e-parlamentarismo-monarquico/. Acesso em 03/05/2020.
  5. RICUPERO, Rubens. A Diplomacia na construção do Brasil. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017. 714 p.

Nota:

  1. “O dinossauro: uma pesquisa sobre o Estado, o patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas”. São Paulo: T. A. Queiroz, 1988. p. 274.



Adendo:

Ouça excerto de aula na qual o Professor José Monir Nasser (1957 – 2013) faz um breve resumo da história da república brasileira:

Pela significância do conteúdo proferido pelo professor Nasser, abaixo segue a transcrição do áudio:


“O motivo pelo qual nós mandamos embora a família real brasileira é que o Brasil quase perdeu a guerra do Paraguai (por pouco, o que é uma vergonha). A família real começou então a ficar muito indisposta com o exército brasileiro por causa da incompetência dos militares. Havia um militar chamado Benjamin Constant, um coronel, mais professor do que militar, que dava aula na Academia Militar da Praia Vermelha. Ele fazia proselitismo de um negócio chamado positivismo. Ficava o tempo todo jogando os militares contra a família real brasileira, dizendo que esse negócio de ter rei é coisa de país cafona, que o moderno era ser como os Estados Unidos, que já tinham república. Esse proselitismo que fez Benjamin Constant durante 20 anos no jovem oficialato, associado ao tom de crítica que a família real brasileira usava com os militares, levou, uma bela tarde, dois militares completamente rudimentares – o Marechal Deodoro e o Marechal Floriano – ao Campo Santana, no Rio de Janeiro, onde proclamaram a República. A coisa mais sem sentido, mais sem cabimento, mais sem sustentação que alguém já fez. Não havia absolutamente nenhuma boa razão para se fazer isso.

Para vocês terem uma ideia de como o nosso Império foi bem sucedido, quando foi extinta a constituição em 1889, com a proclamação da República, a constituição brasileira era a terceira mais durável do mundo. Havia um parlamentarismo, que funcionava muito bem, com o poder moderador do imperador (quer dizer, ele não deixava fazer besteira). Mas foi a falta absoluta de cultura nacional, a falta de densidade cultural das elites que permitiu que isso acontecesse. Aí, nós fizemos o quê? Mandamos embora dom Pedro I, que foi ser dom Pedro IV lá em Portugal (brigando com o irmão, o tal do Miguel, que depois também foi rei) e mandamos embora dom Pedro II, mais ou menos o internamos em Jacarezinho. A família ficou toda em Jacarezinho, tanto é que a maior parte desses herdeiros da família real são paranaenses. Jacarezinho chamava-se Nova Alcântara. E aí fizeram esse ato genial, maravilhoso de marketing de mudar o nome de Nova Alcântara pra Jacarezinho. Dá pra imaginar uma coisa dessas?

Aí ficou essa miséria de república. Dali mais seis meses há o primeiro golpe militar, do Floriano contra o Deodoro. Depois vem a Revolta da Esquadra 1, a Revolta da Esquadra 2, a Revolução Federalista… O que nós conseguimos com essa republiqueta? Só fazer uma quartelada a cada cinco anos. É o que conseguimos na prática, enquanto o governo imperial era estável. Mas esse assunto é bem maior do que podemos falar hoje”.


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