As ciências e a filosofia

Obra: "Natureza Morta com vaso branco quebrado e pão", de Márcio Camargo.

* Excerto da obra “Fundamentos de Filosofia. Lições Preliminares”, de
Manuel García Morente (1886 – 1942).



Assim, por exemplo, pertencem à realidade o número e a figura. As coisas são duas, três, quatro, cinco, seis, mil ou duas mil; coisas são triângulos, quadrados, esferas. Mas, desde o momento em que se separa o “ser número” ou o “ser figura” dos objetos que o são, e se convertem a numerosidade e a figura (independentemente do objeto em questão) em termos do pensamento; quando se circunscreve este pedaço de realidade e se consagra atenção especial a ela, ficam constituídas as matemáticas como uma ciência independente e se separam da filosofia.

Se, depois, outro pedaço da realidade, como são, por exemplo, todos os corpos materiais em suas relações recíprocas, se destacam como um objeto preciso de pesquisa, então se constitui a ciência física. Quando os corpos, em sua constituição íntima, em sua síntese de elementos, se destacam também como objetos de pesquisa, constitui-se a química. Quando a vida dos seres viventes, animais e plantas, se circunscreve e se separa do resto das coisas que são, e sobre ela se lança o estudo e o olhar, então se constitui a biologia.

O que aconteceu? Pois aconteceu que grandes setores do ser em geral, grandes setores da realidade, se constituíram em províncias. E por que se constituíram em províncias? Pois precisamente porque prescindiram do resto; porque deliberadamente se especializaram; porque deliberadamente renunciaram a ter o caráter de objetos totais. Isto é, uma ciência deixa a filosofia quando renuncia a considerar seu objeto de um ponto de vista universal e totalitário.

A ontologia não recorta na realidade um pedaço para estudá-lo, ela sozinha, esquecendo os demais, mas antes tem por objeto a totalidade do ser. A metafísica forma, também, parte da ontologia. A teoria do conhecimento refere-se a todo conhecimento de todo ser.

Assim, pois, se agora fazemos uma pequena pausa, nos detemos em nosso caminho e realizamos o que dizia no começo, ou seja, uma tentativa de definição, embora rápida, da filosofia, poderíamos dizer o seguinte (e agora o diremos com plena vivência): a filosofia é a ciência dos objetos do ponto de vista da totalidade, enquanto as ciências particulares são os setores parciais do ser, províncias recortadas dentro do continente total do ser. A filosofia será, pois, nesse primeiro esboço de definição — seguramente falso, seguramente esquemático, mas que, para nós agora, tem sentido — a disciplina que considera o seu objeto sempre do ponto de vista universal e totalitário, enquanto qualquer outra disciplina, que não seja a filosofia, o considera de um ponto de vista parcial e derivado.


Extraído da obra Fundamentos de Filosofia. Lições Preliminares”,
escrita por Manuel García Morente (1886 – 1942).


Nota da editoria:

Imagem da capa: “Natureza Morta com vaso branco quebrado e pão”, por Márcio Camargo.


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