Contos de fadas

Obra: "Cinderella", por Gaston La Touche (1854 - 1913).

O grande poeta existe para mostrar ao homem pequeno o quanto ele é grande.
G. K. Chesterton (1874 – 1936)



Algumas pessoas solenes e superficiais (pois quase todas as pessoas superficiais demais são solenes) afirmaram que os contos de fadas são imorais; basearam-se em algumas circunstâncias acidentais ou em incidentes lamentáveis na guerra entre gigantes e crianças, em alguns dos casos tendo as últimas se satisfeito com criar embustes ou até mesmo com pregar peças. A objeção, contudo, não apenas é falsa, mas o exato oposto dos fatos. Os contos de fadas são por natureza não apenas morais no sentido de serem inocentes, mas morais no sentido de serem didáticos, morais no sentido de moralizarem. Que falem da liberdade na terra encantada, mas o fato é que, segundo as melhores estatísticas oficiais, a liberdade é bem pouca e preciosa na terra encantada. O Sr. W. B. Yeats e outras almas modernas sensíveis, notando que a vida moderna é uma escravidão tão abominável como nunca antes oprimira a humanidade (estão de todo certos nisso), descreveram especialmente a terra do faz-de-conta como um lugar de completo conforto e abandono — um lugar onde a alma pode seguir por onde quiser, ao seu bel prazer, como o vento. A ciência denuncia a ideia de um Deus caprichoso; mas a escola do Sr. Yeats sugere que naquele mundo toda pessoa é um deus caprichoso. O próprio Sr. Yeats disse um sem-número de vezes, naquele estilo literário magnífico e triste que faz dele o primeiro entre todos os poetas atualmente a escrever em língua inglesa (não direi entre todos os poetas ingleses, pois os irlandeses estão bem familiarizados com a prática da investida física), ele, eu ia dizendo, invocou um semnúmero de vezes a imagem da liberdade terrível das fadas, as quais tipificam a anarquia derradeira da arte —

Lá onde ninguém se torna velho, cansado ou sábio,
Lá onde ninguém se torna velho, devoto ou sério.

Mas, no fim das contas (é algo chocante de se dizer), tenho minhas dúvidas de se o Sr. Yeats realmente conhece a verdadeira filosofia das fadas. Ele não é um homem simples o suficiente; ele não é estúpido o suficiente. Todavia, digo, embora não devesse, que em boa e sensata estupidez eu bato o Sr. Yeats de lavada. As fadas simpatizam comigo mais do que com o Sr. Yeats; elas tendem a me admitir mais que a ele entre si. E tenho minhas dúvidas sobre se essa impressão de espíritos livres e selvagens na crista de ondas ou montes é realmente o espírito simples e central do folclore. Creio que os poetas se enganaram: porque a terra encantada é um mundo mais brilhante e mais variado que o nosso, eles o imaginaram menos moral; na verdade é mais brilhante e mais variado porque é mais moral. Suponha que um homem possa ter nascido em uma prisão moderna. É impossível, claro, pois nada de humano pode acontecer em uma prisão moderna, embora o pudesse às vezes em um calabouço antigo. Uma prisão moderna é sempre inumana, mesmo quando não é inumana. Mas suponha que um homem tivesse nascido em uma prisão moderna e tenha crescido acostumado ao silêncio mortal e à indiferença repugnante; e suponha que ele seja subitamente libertado em meio à vida e algazarra da Fleet Street. Ele pensaria, como é óbvio, que os literatos na Fleet Street são uma raça livre e feliz; ainda assim quão triste, quão ironicamente é esse o oposto da verdade! E de igual modo esses escravos estafados da Fleet Street, ao terem um vislumbre da terra encantada, pensam que as fadas são completamente livres. Mas fadas são como jornalistas sob esse e muitos outros aspectos. Fadas e jornalistas têm uma alegria aparente e uma beleza enganadora. Fadas e jornalistas parecem ser amáveis e não ter lei; ambos parecem requintados demais para descer à feiura dos deveres do dia a dia. Mas isso é uma ilusão criada pela presença repentina deles. Jornalistas vivem submetidos à lei; e assim também a terra encantada.

Capa da obra: "Contos de Fadas e Outros Ensaios Literários", de G. K. Chesterton.Se se realmente ler os contos de fadas, observar-se-á que uma ideia os atravessa de ponta a ponta — a ideia de que a paz e a felicidade só podem existir dadas determinadas condições. Essa ideia, que é o âmago da ética, é o âmago dos contos infantis. Toda a felicidade da terra encantada pende de um fio, de um único fio. Cinderela pode? ter um vestido costurado em teares sobrenaturais e que brilhe com uma luminosidade celeste; mas ela deve estar de volta quando o relógio der meia-noite. O rei pode convidar fadas para o batismo, mas ou ele convida todas as fadas ou consequências temíveis se seguirão. A esposa de Barba Azul pode abrir todas as portas, menos uma. Uma promessa é quebrada por conta de um gato, e tudo dá errado. Uma promessa é quebrada por conta de um gnomo amarelo, e tudo dá errado. Uma garota pode ser a noiva do próprio Deus do Amor desde que nunca tente vê-lo; ela o vê, e ele se esvai. A uma garota é dada uma caixa com a condição de que nunca a abra; ela a abre, e todos os males deste mundo se prcipitam afora à sua frente. Um homem e uma mulher são postos em um jardim sob a condição de que não comam um determinado fruto; eles o comem, e perdem o seu gozo de todos os frutos da terra.

Essa grande ideia, pois, é a espinha dorsal de todo o folclore — a ideia de que toda a felicidade pende de uma pequena proibição; de que toda a alegria positiva depende de uma negativa. Bom, é óbvio que existem muitas ideias filosóficas e religiosas aparentadas ou simbolizadas por isso; mas não é delas que quero tratar aqui. É inegavelmente óbvio que toda a ética deve ser ensinada de acordo com a harmonia da terra encantada; a de que, se alguém faz algo proibido, põe em risco tudo aquilo de que dispõe. Se um homem quebra a sua promessa para com a esposa, ele deve ser lembrado de que, mesmo se ela for um gato, o caso da fada-gato mostra que tal conduta é pouco prudente. Um arrombador prestes a abrir o cofre de alguém poderia ser jocosamente lembrado de que ele está na situação perigosa da bela Pandora: ele está prestes a erguer a tampa proibida e a libertar males desconhecidos. O garoto comendo a maçã alheia do pé de maçã alheio poderia ser lembrado de que chegou a um momento místico de sua vida, quando uma maçã pode lhe roubar todas as outras. Essa é a profunda moralidade dos contos de fadas; o fato de que, longe de serem livres de leis, vão à raiz de toda lei. Em vez de encontrar (tal o comum dos livros de ética) o fundamento racionalista de cada Mandamento, elas encontram o grande fundamento místico de todos os Mandamentos. Estamos nessa terra encantada em meio ao sofrimento; não nos cabe lutar com as condições sob as quais gozamos essa ampla visão do mundo. As proibições são de fato extraordinárias, mas igualmente o são as concessões. A ideia de propriedade, a ideia de que haja maçãs alheias, é uma ideia esquisita; mas do mesmo modo a ideia de que existam maçãs é uma ideia esquisita. É estranho e misterioso que não se possa, em segurança, beber dez garrafas de champanhe; mas do mesmo modo, se você reparar, o próprio champanhe é estranho e misterioso. Se eu fosse tomar da bebida das fadas, não seria mais que justo que devesse tomar de acordo com as regras das fadas. Podemos não ver a conexão lógica direta entre três bonitas colheres de prata e um grande e feio policial; mas quem, em contos de fadas, já pôde alguma vez ver a conexão lógica direta entre três ursos e um gigante ou entre uma rosa e uma besta vociferante? Não apenas podem esses contos de fadas serem apreciados por serem morais, mas a moralidade pode ser apreciada porque nos põe em uma terra encantada, em um mundo ao mesmo tempo de maravilha e de guerra.


Excerto da obra: “Contos de fadas e outros ensaios literários”, escrita por G. K. Chesterton (1874 – 1936).
Publicada pela Livraria Resistência Cultural Editora, sob ISBN: 978-8566418033.


Nota da Editoria:

Imagem da capa: “Cinderella”, de Gaston La Touche (1854– 1913).


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