Entre santos e reis

Obra: "Louis IX, dit Saint Louis, Roi de France (1215-1270)" (1844), por Émile Signol (1804 – 1892).

Filho, deves evitar tudo quanto sabes desagradar a Deus, quer dizer, todo pecado mortal, de tal forma que prefiras ser atormentado por toda sorte de martírios a cometer um pecado mortal.
São Luís IX ao seu filho, futuro rei Felipe III



Para a nossa mentalidade moderna, pareceria assombroso definir um estadista como alguém verdadeiramente temente a Deus e, mais ainda, como o representante de um poder político inteiramente derivado e subjugado à fé cristã, razão exclusiva de sua legitimidade de governante. Eis, porém, como um antigo dicionário litúrgico descreve a cerimônia de coroação (que é, na verdade, uma cerimônia de bênção) de um novo rei:

“Bênção do rei e da rainha, chamada também coroação, é um solene sacramental (não sacramento) administrado pelo Metropolita, com assistência dos demais Bispos do país, em união com a Santa Missa. O rico cerimonial, que imita o da sagração dos Bispos, compõe-se de duas partes. A primeira realiza-se antes da Missa, e consiste nos atos seguintes: pedido de coroação da parte do mais antigo dos Bispos e pergunta do Metropolita sobre a dignidade do apresentado, exortação ao mesmo, juramento do rei, oração sobre o rei, recitada por todos os Bispos presentes, a Ladainha de Todos os Santos, com duas bênçãos, duas pequenas orações deprecatórias e, em seguida, a unção com o óleo dos catecúmenos no antebraço direito e entre as espáduas, com duas orações que se referem à unção. Depois entra a Missa, que se interrompe no Gradual para a continuação das cerimônias. Entre orações, o Metropolitano entrega ao rei a espada desembainhada e cinge-o com ela já na bainha. O rei tira-a de novo, movimenta-a fortemente no ar, limpa-a no braço esquerdo e a coloca na bainha. O Metropolita coloca-lhe então a coroa, entrega-lhe o cetro e o conduz, sem espada, ao trono. Entoa-se em seguida o Te Deum com longa oração no fim. No Ofertório entrega o rei ao Metropolita uma esmola em dinheiro, que recorda a oferta que na Idade Média fazia nesta ocasião de pão, vinho e dinheiro. Depois da Comunhão, o celebrante oferece ao rei vinho para beber, o que também constitui uma lembrança do uso observado antigamente de o rei comungar sob ambas as espécies no dia da sua coroação. (…) A bênção do rei consta que esteve em uso na Espanha desde o VII século (…).”

(Frei Basílio Röwer, O. F. M. Dicionário Litúrgico. 3a ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1947 [1a edição de 1928])

A situação política moderna nos convida a buscar uma saída em um de dois extremos: o do completo servilismo, de um lado, e o da anarquia, de outro. Nenhuma dessas posições, no entanto, foi jamais assumida no interior do cristianismo, que, ao longo de sua história, e mesmo já no Antigo Testamento, viu-se permeado de governantes e monarcas constituídos em autoridades legítimas, muitos dos quais Deus utilizou repetidas vezes como santas ferramentas de seus propósitos. Da admissão de Cristo como único e verdadeiro Rei só pode decorrer que os reis entre os homens estejam automaticamente submetidos ao fardo de buscar fazer de seu governo um reflexo, tanto quanto possível, do governo de Nosso Senhor, pelo que serão cobrados pelo povo e pelas autoridades eclesiásticas, e, se necessário, depostos do trono por “justa causa”, como ocorreu não poucas vezes ao longo da história.

Mas sob o pretexto de uma coleção de narrativas ideológicas, em nome de valores como a “liberdade” e outras palavras-chave, a humanidade foi completamente mergulhada em um anticristianismo e ateísmo — aos quais chamou-se laicismo —, e a outrora submissão pública de todos os poderes terrestres ao poder de Deus passou a ser substituída, pouco a pouco, pelo paganismo, pelo satanismo, pela maçonaria, pelo comunismo e por tudo o que não presta — não sem o auxílio absolutamente essencial, ao longo dos tempos, da revolução cosmológica moderna, que representou ao nível do universo físico a fratura da hierarquia, ordem e autoridade naturais que o laicismo representou do ponto de vista sociopolítico, ambos por sua vez confluindo, portanto, em uma ruptura fundamentalmente espiritual. Não obstante, é assustadora a quantidade atual de cristãos que, ao mesmo tempo em que denunciam toda forma de anticristianismo nos mais altos níveis dos governos mundiais, acreditam ainda que a fundação do “Estado laico” tenha sido uma simples obra, mais ou menos inevitável, de pessoas inocentes que, no fundo, estivessem de fato apenas preocupadas com a defesa das “liberdades individuais” — ameaçadas, à época, por este “sombrio capítulo do passado da Igreja” que só existiu nos manuais e livros didáticos que os seus inimigos passaram a imprimir, uma vez tomado o poder —, sem perceber que uma coisa é condição da outra.

O quão distantes não estaremos, hoje, do tempo em que um governante alcançava nada menos que a canonização, como um São Luís IX, rei da França, ou um Santo Estêvão, rei da Hungria?


Por Daniel Marcondes.
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Notas da editoria:

Imagem de capa “Louis IX, dit Saint Louis, Roi de France” (1844), por Émile Signol (1804 – 1892).


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