Hipocrisia arquitetônica

Obra: "At the Antique Dealer's Shop" (1919), por Carl Johann Spielter (1851 - 1922)

A política tem sido a arte de obter a paz por meio da injustiça.
Agostinho da Silva (1906 – 1994)



Na calada da noite, acontece secretamente uma reunião de um certo grupo de pessoas, todas com os bolsos cheios de dinheiro, donas de carros luxuosos, ostentando joias e relógios de marcas caras. Entre um gole e outro de vinho, uma petiscada e outra de queijo brie e prosciutto di Parma, discutem sobre como atrair mais negócios e lucrar mais, sobre quem ainda não recebeu sua tão merecida propina e sobre quem está à venda, mas ainda não faz parte da folha de pagamento dos chefões.

Talvez o leitor tenha imaginado uma reunião entre mafiosos ou até entre políticos, mas o que tenho para contar é bem menos prepotente e bem mais desprezível. Mais desprezível do que políticos corruptos? Ora, pelo menos ainda podemos dizer que estes sofrem algum tipo de tentação, aquela com que todos os brasileiros sonham: a de mudar de vida pelo preço de um pecado só; afinal, o que é mais um no meio de tantos, não é mesmo? “Levo embora esta maleta recheada de dinheiro, sumo daqui, e depois é só alegria; faço uma doação generosa e Deus há de me perdoar.” Mas não posso dizer que são atormentados pelo mesmo comichão os tipos que venho expor aqui.

Se, por exemplo, você acredita ser um marido virtuoso porque é fiel à sua esposa, mas não tem sequer a oportunidade de traí-la, pois não há uma única mulher louca o suficiente para olhar na sua direção, é preciso perguntar: que virtude imaginária é essa que você está pondo em prática? Da mesma forma, os políticos ao menos são tentados de alguma maneira; mas e nós, que, na primeira oportunidade de ganhar qualquer tipo de vantagem ou benefício, por mais idiota que seja, jogamos todas as nossas crenças e valores janela afora, como se fôssemos prostitutas baratas? Por estas, aliás, tenho o maior respeito; afinal de contas, além de realizarem um trabalho extremamente desagradável — creio eu —, não existe contrato velado ou obscuro com uma prostituta. Ambas as partes estão de acordo e sabem muito bem o que vai acontecer (ainda não ouvi falar de nenhum pobre coitado que tenha ido até a delegacia do consumidor denunciar sua profissional do sexo).

Mas, de volta para a reunião: estão sentados à minha frente os proprietários de diversas lojas de diferentes segmentos. O dono da loja de móveis de alto padrão na qual trabalho como vendedor — ou “consultor”, quando se quer passar a impressão de expertise —, o de uma loja de automação residencial, um outro que vende churrasqueiras americanas, mais um de móveis planejados e, finalmente, aquele da loja de tintas. Para mim, isso já é corriqueiro, mas é natural que surjam algumas perguntas em sua cabeça: “Por que esse povo está se reunindo?”, ou, ainda, “e eu com isso?!” — chegaremos lá.

Carteira Perdida (Tamanho Pequeno com Cantos Esfumaçados)Estamos na zona nobre de Sorocaba, interior de São Paulo. Melhor do que aqui, só em outra cidade, pois, por estas bandas, estamos no melhor ponto. É claro que quando digo “melhor” estou levando em conta apenas o aspecto econômico da coisa, uma vez que se considerarmos o aspecto moral, posso afirmar ter visto mais ética e menos imoralidade em uma biqueira dentro de uma favela, às três da madrugada. Enfim, permita-me explicar como as coisas funcionam no comércio de alto padrão: o cliente, que batalhou a vida toda, construiu seu próprio negócio, empregou um monte de gente, pagou uma tonelada de impostos, levou processos trabalhistas a torto e a direito, quebrou, e tornou a fazer toda essa loucura outra vez apenas por uma obstinação quase que doentia, decide que vai usar seu dinheiro, que não é pouco, contratando uma arquiteta para ajudá-lo a construir sua casa dos sonhos, aquela com a disposição de espaços ideal para o dia a dia de sua família, com a decoração alinhada à sua personalidade, com cores e obras de arte que alimentem seu espírito. Finalmente, um lugar para chamar de lar, para receber os amigos, ter paz, se divertir e descansar: o sonho tão sonhado. O que o sujeito não imagina é que essa mesma arquiteta, que já vai receber uma grana mais do que justa por este serviço, receberá também uma generosa “premiação” de todos esses lojistas que estão, agora mesmo, em minha frente, dando prosseguimento à bendita reunião, discutindo sobre como trazer mais dessas “profissionais” para a loja. Até aí, não há qualquer problema; o lojista tem todo o direito de buscar alternativas para encontrar mais parceiros, assim trazendo mais clientes e lucro para sua empresa, certo? Errado — adivinhe só quem é que paga essa conta… isso mesmo: o cliente.

Essa premiação, incentivo, comissão ou reserva técnica (RT), chame como quiser (propina ou suborno também definem), gira em torno de 10% do valor da compra, e é embutido no preço que o cliente vai pagar. Antes mesmo de que ele apareça na loja, seu confiável arquiteto já avisou o gerente, que avisou o vendedor, que já superfaturou os preços e está só esperando para dar um desconto especial, único, imperdível — e, obviamente, falso —, de modo a despertar no comprador um sentimento de vitória sobre o lojista, nessa disputa que chamamos de negociação, mas que está mais para um jogo de cartas marcadas. O cliente acredita ter feito o melhor negócio de sua vida, e jura que pode até indicar a loja para seus amigos e familiares, mas que nenhum deles conseguirá fechar um negócio tão bom quanto o dele; afinal, até o gerente teve de ir à mesa para melhorar o valor a ser pago, depois ligou para o supervisor das lojas, que ligou para o dono, que autorizou a aplicação de um “desconto especial” — obviamente impraticável e do qual até a mais ingênua das almas desconfiaria. É um teatrinho barato, mas o cliente gosta. E isso se repete em todas as compras realizadas durante a obra: materiais de construção, esquadrias, mármores, móveis planejados, decorações e assim por diante, do tijolo ao sofá, do cimento ao espelho do banheiro do Pedrinho. Ao final de uma obra milionária, quem sai montado no dinheiro é o arquiteto.

Isso é crime? Sim. Alguém já foi preso ou multado por essa prática? Veja, denunciar um arquiteto ao Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) por receber RT seria como denunciar o Lula à CUT por corrupção. Vai acabar em churrasco, de preferência de picanha e, de preferência, pago pelo cidadão, ou, nesse caso, pelo consumidor.

Pode ser que eu tenha passado a impressão de que me importo com o dinheiro extra que o milionário está desembolsando para manter o estilo de vida pueril de seu arquiteto, como se o acesso semanal a almoços, jantares, bebidas e eventos gratuitos já não o mimassem o suficiente, tudo em nome da boa e velha puxação de saco: quem não é visto não é lembrado, não é mesmo? Mas não é no bolso do meu cliente que está meu ponto de interesse, pelo menos não agora.

O real problema, aqui, não é o crime cometido, o jogo político entre lojistas e arquitetos, a condescendência do CAU, nem muito menos a cegueira quase que voluntária do consumidor. O buraco é mais embaixo. Os mais atentos já perceberam que é possível traçar um paralelo entre o comércio e a política do nosso país, entre os lojistas e os políticos, arquitetos e empreiteiras, clientes e povo. Normalmente, quando se abre a boca para falar dos problemas do Brasil, o primeiro ponto levantado é sempre o da economia, dando a impressão de que somos um país pobre; mas se fôssemos assim tão pobres, não haveria tanto dinheiro para ser roubado. A grana existe, só não chega no povo, ou melhor, não volta para o povo. O segundo ponto é o da corrupção, mas nunca falam disso desde um ponto de vista moral — nunca vi uma discussão moral em toda a minha vida de brasileiro —, mas sempre num tom de “onde é que está esse lamaceiro que nunca nos respinga?”. Quem nunca ouviu um amigo falar, sobre seu candidato, que “todos roubam, mas ele pelo menos faz alguma coisa”? Ou seja, desde que nos sobre alguma esmola, o senhor governo pode nos roubar o quanto quiser.

Quem ainda acredita que nosso problema é puramente político ou econômico não poderia estar mais enganado. Vivemos uma crise muito pior, uma crise moral. Vemos em todos os níveis de nossa sociedade a reprodução do jeitinho brasileiro, do qual tanto nos orgulhamos, sabe lá Deus o porquê. E como é esse jeitinho? É ser malandro, astuto, traiçoeiro e egoísta, notas que nos rebaixam à barbárie, a um estado animalesco, ao individualismo e ao materialismo. Será que é pedir demais um Brasil no qual aquilo pelo que somos lembrados mundo afora sejam valores superiores, nos elevando ao que o ser humano tem de melhor a oferecer, como honra, lealdade, coragem e justiça? Valores que sejam maiores do que nós mesmos, que nos transcendam, que nos lembrem que existe algo para além do cargo público e da casa em condomínio fechado, que somos seres dotados de alma e espírito, que nosso bom Deus, o Bem Supremo, em sua misericórdia infinita, decidiu nos presentear com a existência eterna: é pedir demais?

O desafio está feito para os mais corajosos, aqueles que não temem a solidão, o isolamento, o exílio, que têm a bravura de enfrentar toda a sujeira que encontramos em nosso dia a dia, dentro da nossa família, do trabalho, e, mesmo assim, voltar para casa limpos, de consciência tranquila, sabendo que rejeitaram todos os “benefícios” que uma vida de malandro pode trazer, decidindo por manter sua integridade, sua honra, e não permitindo que o dinheiro se tornasse seu senhor. Pois nós temos essa capacidade, nós podemos escolher o lado do bem, o lado que lance uma nova esperança, que lembre a todos de que somos mais do que animaizinhos em busca dos mais baixos prazeres terrenos.

A única forma de tirar o ser humano de seu estado de selvageria e torná-lo civilizado é através da cultura, esta que Cícero definia como o cultivo do espírito. Há uma herança cultural que nossos antepassados nos deixaram. A maior perda do povo brasileiro não foi o dinheiro; o dano mais grave que nos causaram, o que nos levaram de mais valioso, foi a alta cultura, e é preciso resgatá-la. Ortega y Gasset também fala sobre isso:

“É o típico ‘homem do seu tempo’, que despreza o passado e, seguro de que o mundo seguirá em linha reta, abandona a preocupação com o futuro, colocando-se definitivamente no presente. Porém o ser humano é herdeiro de seus antepassados, difere dos outros animais também por possuir memória. O homem tem direito à continuidade. Um tigre é sempre igual ao primeiro tigre, tem que começar de novo, como se não tivesse havido outro tigre antes dele. Mas o homem tem uma herança incalculável de acertos e erros do passado ao seu alcance. Dizer-se um ‘homem do seu tempo’ é uma desculpa de não poder tomar nenhuma medida corretiva, pois o seu mal é um mal do seu tempo, compartido por todos seus contemporâneos.”

Mas onde fico eu em toda essa história? Como já disse, sou vendedor e estou enfiado nessa bagunça moral todos os dias; o que me conforta é que, apesar do meu trabalho ser extremamente desagradável, meu negócio com o consumidor é bastante claro, e ambas as partes estão sempre de acordo.

Em meio a todas as analogias aqui utilizadas, eu sou o menos pior: eu sou a prostituta.


Por Caio Machado


Nota da editoria:

Imagem da capa: “At the Antique Dealer’s Shop” (1919), de Carl Johann Spielter (1851 – 1922).


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Angelica

Genial!

Dario

Talvez o cliente “…que batalhou a vida toda, construiu seu próprio negócio, empregou um monte de gente, pagou uma tonelada de impostos, levou processos trabalhistas (…).Fez o mesmo antes.

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