Atente: O ensaio desta postagem foi escrito por George Orwell (1903 – 1950) em 1941. Atualmente podemos compará-lo com aqueles passatempos intitulados “jogo do sete erros”, onde são expostas lado a lado duas imagens parecidíssimas com pequenos detalhes divergentes que deverão se localizados pelo “jogador”. Coloque esta postagem ao lado dos atuais acontecimentos, e você encontrará diversas similaridades!
Lendo pouco tempo atrás uma porção de livros “progressistas” muito superficialmente otimistas, fiquei chocado com o modo automático com que as pessoas repetem certas expressões que estavam na moda antes de 1941. Duas grandes favoritas são “abolição das distâncias” e “desaparecimento das fronteiras”. Não sei quão frequentemente deparei com declarações de que “o avião e o rádio aboliram as distâncias” e “todas as partes do mundo são agora interdependentes”.
O fato é que o efeito das invenções modernas tem sido o de aumentar o nacionalismo, tornar a viagem imensamente mais difícil, reduzir os meios de comunicação entre um e outro país e fazer as várias partes do mundo ficarem menos, e não mais, dependentes uma da outra quanto a alimentos e bens manufaturados. Isso não é um resultado da guerra. As mesmas tendências vinham atuando desde 1918, embora tenham se intensificado após a Depressão Mundial.
Por exemplo, tomem-se as viagens. No século XIX algumas partes do mundo eram inexploradas, mas quase não havia restrição a viagens. Até 1914 não se precisava de um passaporte para nenhum país, exceto a Rússia. O migrante europeu, se conseguisse arranjar umas poucas libras para a passagem, simplesmente embarcava para a América ou a Austrália, e quando lá chegava não lhe faziam perguntas. No século XVIII era quase normal e seguro viajar para um país com o qual seu próprio país estava em guerra.
Em nossa época, no entanto, viajar tem se tornado cada vez mais difícil. Vale a pena listar as partes do mundo que já eram inacessíveis antes de a guerra começar.
Em primeiro lugar, toda a Ásia Central. Com exceção talvez de uns pouquíssimos comunistas comprovados, nenhum estrangeiro entrou na Ásia soviética já faz muitos anos. O Tibete, graças ao ciúme entre Inglaterra e Rússia, tem se mantido fechado desde cerca de 1912. Sinkinang, em tese parte da China, é igualmente inatingível. Depois todo o Império japonês, exceto o próprio Japão, foi quase barrado a estrangeiros. Nem mesmo a Índia tem sido tão acessível desde 1918. Muitas vezes passaportes foram recusados até para súditos britânicos — e em alguns casos até para indianos!
Mesmo na Europa os limites para viajar estavam constantemente se estreitando. A menos que fosse para uma visita curta, era muito difícil entrar na Inglaterra, como descobriram tantos alquebrados refugiados antifascistas. Vistos para a URSS eram emitidos com bastante relutância a partir de 1935. Todos os países fascistas se fechavam a qualquer um em cujos registros constasse ser antifascista. Havia muitas áreas que só se podiam atravessar com a condição de não descer do trem. E ao longo de todas as fronteiras existiam cercas de arame farpado, metralhadoras e rondas de sentinelas, frequentemente usando máscaras antigás.
Quanto à migração, tinha quase desaparecido desde os anos 1920. Todos os países do Novo Mundo fizeram o que era possível para manter imigrantes afastados, a menos que trouxessem com eles consideráveis somas de dinheiro. A imigração japonesa e chinesa para as Américas havia cessado completamente. Os judeus da Europa foram obrigados a ficar e ser chacinados porque para eles não havia para onde ir — no caso dos pogrons tsaristas de quarenta anos antes, tinham conseguido fugir em todas as direções. Diante de tudo isso, dizer que os métodos modernos de viagem promovem a intercomunicação é algo que simplesmente não posso entender.
Os contatos intelectuais também diminuíram já há muito tempo. Não faz sentido dizer que o rádio põe as pessoas em contato com países estrangeiros. Se o rádio faz alguma coisa, é exatamente o contrário. Uma pessoa comum jamais ouve uma rádio estrangeira, mas, se em qualquer país um grande número de pessoas sinalizar que o está fazendo, o governo tratará de impedi-las, seja com punições brutais, seja com a apreensão de aparelhos de ondas curtas ou com a instalação de estações que transmitem sinais de interferência. O resultado disso é que toda rádio nacional é um tipo de mundo totalitário em si mesmo, zurrando noite e dia propaganda para pessoas que não têm como ouvir nenhuma outra coisa. Enquanto isso, a literatura fica cada vez menos internacional. A maioria dos países totalitários barra a entrada de jornais estrangeiros e só permite uma pequena quantidade de livros estrangeiros, que são submetidos a uma cuidadosa censura e às vezes são publicados em versões deturpadas. Cartas que circulam de um país a outro habitualmente são adulteradas no meio do caminho. E em muitos países, durante a última dúzia de anos, livros de história têm sido reescritos em termos muito mais nacionalistas do que antes, de modo que as crianças possam crescer com a visão mais falsa possível do mundo lá fora.
Escrito por George Orwell (1903 – 1950).
Tribune, 12 de maio de 1944.
Este ensaio faz parte da obra: “O que é o fascismo? E outros ensaios”,
publicada pela Companhia das Letras, sob ISBN 978-8535928891.
Nota do editor:
A imagem associada a esta postagem ilustra recorte de obra criada por Peregrine Heathcote. O artista é conhecido por suas pinturas requintadas que lembram tempos antigos, quando viajar era o auge do luxo. Para mais detalhes (obras e artista), clique aqui.