O espectro do cientificismo

Cérebro de madeira com engrenagens de ferro

A ciência nunca resolve um problema sem criar pelo menos outros dez.”,
George Bernard Shaw (1856 – 1950): dramaturgo e romancista irlandês.



Uma patologia característica de grande parte do pensamento pós-iluminista é frequentemente chamada de “cientificismo”: considerar o método científico a única maneira de conhecer toda e qualquer coisa.

Quase ninguém prescindiria dos progressos materiais à vida humana que as ciências naturais alcançaram. Por meio do método científico, a Idade da Razão nos legou um certo poder sobre os caprichos brutais da natureza. Um efeito colateral destas conquistas foi que alguns começaram a tratar as ciências empíricas como a única forma de raciocínio verdadeiro e o principal caminho para discernir o conhecimento verdadeiro […].

Poucos acadêmicos confessariam estar promovendo o “cientificismo”. Isto é frequentemente uma questão de mentalidade. O elogio de Sir Francis Bacon às ciências naturais em sua obra Nova Atlântida (publicada postumamente) e seu respectivo silêncio a respeito das outras formas de raciocínio cheira a cientificismo. Mais próximo de nosso tempo, o enorme progresso tecnológico e industrial obtido durante o século XIX através de disciplinas como a biologia, química, engenharia e física encorajou uma retórica triunfalista acerca do potencial da ciência de eclipsar todo o resto […].

No dia-a-dia, o cientificismo aparece sempre que se apela à linguagem da ciência como um trunfo no debate. Quando alguém responde a um argumento dizendo “a ciência afirma…”, está frequentemente insinuando que as ciências naturais oferecem o único padrão real de objetividade, fazendo do cientista uma autoridade quase religiosa, a quem todos devem deferência.

O calcanhar de Aquiles do cientificismo é que ele é baseado no que os filósofos costumam chamar de premissa autorrefutável. A verdade da alegação “nenhuma alegação é verdadeira enquanto não puder ser provada cientificamente” não pode, por si mesma, ser provada cientificamente. É preciso empregar outras formas de raciocínio para usar este tipo de argumento. Mas essas são formas de raciocínio que o cientificismo considera irracionais.

Até mesmo a decisão de embarcar na empreitada científica apoia-se em algo que precede o método científico: a convicção racional de que existe a verdade, que nós podemos conhecê-la e, sobretudo, que é bom distinguir entre a verdade e o erro. Nós não nos dedicamos a pesquisas médicas, por exemplo, simplesmente porque queremos saber por que a penicilina mata bactérias. Queremos saber por que a penicilina mata bactérias para que possamos proteger a vida e saúde humanas. A vida humana, pensamos nós, é boa e merecedora de proteção da doença.

Apesar desses graves defeitos do cientificismo, sua aceitação possui dois efeitos na sociedade. Primeiro, acredita-se que qualquer coisa que não seja quantificada é subjetiva, relativa, arbitrária, uma questão de opinião ou um reflexo das emoções. A ideia de Deus, então, é reduzida, na melhor das hipóteses, ao conhecimento das estruturas matemáticas que sustentam a natureza. Isso pode apontar para uma hipótese como a Causa Primeira, proposta por deístas e alguns filósofos gregos. Porém, fora desse enquadramento Deus se torna uma questão de opinião subjetiva e costumes piedosos, ou seja, sem sentido […].

Capa da obra: “Reason, Faith, and the Struggle for Western Civilization”, escrita por Samuel Gregg.O segundo efeito do cientificismo é que ele estimula tendências imperialistas nas ciências naturais. Ao invés de rejeitar tudo o que não é quantificável como mera opinião, nós buscamos submeter tudo ao método científico. Um exemplo notável dessa ideia é a utilização da teoria da evolução para explicar a moralidade. A proibição quase universal do incesto, por exemplo, é explicada como uma adaptação evolutiva que impediu a endogamia, aumentando a resistência da espécie humana. Este é um posicionamento descritivo, isto é, uma tentativa de demonstrar como uma regra moral veio a se formar. Mas também pressupõe – uma vez que não se esforça em provar – que nenhum raciocínio ou conhecimento moral é inato aos seres humanos.

Mas a moralidade evolucionária também pode assumir um caráter prescritivo na medida em que define o bem e o mal em termos evolutivos. “Bom” é o que fortalece a espécie. “Mau” é o que enfraquece a espécie. Este pensamento está na base de argumentos morais como aqueles criados pelo movimento eugenista na defesa de práticas como a esterilização compulsória dos deficientes. Bom é o que quer que tenha promovido a melhor reprodução dos mais aptos e limitado a reprodução daqueles menos bem-dotados geneticamente.

O que devemos ter em mente é que a moralidade evolucionária é profundamente cientificista. Ela pretende explicar a moralidade e resolver os problemas morais baseando-se no que alguns cientistas acreditam ter sido descoberto a respeito do desenvolvimento da espécie humana por determinadas ciências. Em 1975, o biólogo E. O. Wilson chegou a sugerir que “é chegada a hora de removermos temporariamente a ética das mãos dos filósofos e a biologizarmos”.

Os problemas de tais posições são diversos. Elas defendem, por exemplo, um tipo de determinismo biológico que nega o livre-arbítrio, e que supostamente incluiria a livre escolha de propor uma teoria científica de tudo, refletir a respeito e responder críticas à teoria. Novamente entramos no domínio das proposições autorrefutáveis.

Ainda pior, nem o cientificismo nem o método científico podem dar respostas coerentes a importantes questões não-científicas, inclusive aquelas criadas pelo progresso das ciências. A física tornou possível o desenvolvimento da energia nuclear. Porém, nem a física nem o método científico podem nos ajudar a decidir se devemos construir usinas nucleares, muito menos se devemos usar armas nucleares.

Estátua da JustiçaComeçamos a perceber, portanto, como o cientificismo, com toda a sua exaltação da razão, subestima irracionalmente a capacidade da razão de conhecer a verdade e de dirigir as decisões do homem para o bem e o justo. Longe de representar a vitória da razão sobre a superstição, o cientificismo é a amputação da razão. Tornamo-nos incapazes de perguntar quais são e quais não são os usos racionais das ciências naturais. O cientificismo nos proíbe de usar a nossa razão para refletir sobre as dimensões filosóficas destas perguntas. Tais questões não são deixadas de lado, elas são suprimidas.

É claro que o cientificismo não consegue impedir que estas perguntas surjam em nossas mentes. Se dizem às pessoas que a razão está limitada às ciências naturais e elas descobrem que tais ciências não conseguem responder a questões importantes, elas tenderão a seguir por um de três caminhos. Alguns tentam construir novos sistemas de compreensão e formulação do mundo de uma maneira que eles consideram científica, enterrando a si próprios ainda mais fundo no bunker do cientificismo. Outros concluem que fora da ciência tudo é relativo. Isso pode levá-los a aceitar a proposição de que a única maneira de tomar decisões é recorrendo a quem quer que possua o maior poder e esteja disposto a utilizá-lo. Um terceiro grupo encontra respostas adotando sistemas de pensamento que exaltam o irracionalismo e a obediência irrefletida a ordens emanadas de autoridades.

E assim nós confrontamos as forças destrutivas que a separação entre fé e razão desencadeou.




Escrito por Samuel Gregg. Traduzido por Victor Terra.
Este texto é um excerto do livro: “Reason, Faith, and the Struggle for Western Civilization”.
A publicação original encontra-se disponível em: https://acton.org/pub/commentary/2019/09/18/specter-scientism.

Samuel Gregg
Dr. Samuel Gregg é diretor de pesquisas do Acton Institute. Escreve sobre economia política, história econômica, ética financeira e teoria da lei natural. Possui MA em filosofia política da Universidade de Melbourne e doutorado em filosofia moral e economia política pela Universidade de Oxford.


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