O meu próprio cadáver

Obra: "Lord Kelvin's mirror galvanometer" (1876), criada em madeira entalhada por artista desconhecido.

Excerto da obra A descoberta do outro (4ª edição de 1952), de Gustavo Corção (1896 – 1978)



Num romance de Alexandre Herculano, um personagem faz à sua namorada uma pergunta patética, no gosto da época: “Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado no próprio cadáver?”

Não me recordo se Hermengarda sabia; eu, porém já posso dizer que avalio aquela situação porque passei mais de quinze anos amarrado à técnica. Cinco entre teodolitos e outros dez, os últimos, fitando ponteiros de galvanômetros. Durante esse tempo tentei algumas evasões, tentativas frouxas, veleidades em letras e em tintas, versos ou quadros, mas acabava voltando ao galvanômetro. Outas vezes, como forma de descanso, entrava a jogar xadrez semanas a fio, metido em clubes e organizações de campeonato; depois tornava ao galvanômetro.

Nesse modo de vida apurei um certo fôlego lógico que me fartava a razão e que ainda por cima me dava algum prestígio. Levei tempo a descobrir que aquela faculdade se desenvolvera à custa de uma atrofia; foi preciso que coisas graves acontecessem para que eu me desse conta de estar amarrado ao meu próprio cadáver. Essa descoberta e suas consequências são o objetivo principal deste livro.

Não quero fazer aqui mais uma vez, o processo já volumoso da técnica, nem mostrar o conflito entre o homem e a máquina. Pretendo mostrar um aspecto da mentalidade técnica e tentar um inventário de seus riscos.

A técnica é inebriante por duas razões fortes. Primeiro, porque dá à inteligência uma satisfação vertiginosa; segundo, porque todos se maravilham com suas prestidigitações. É difícil resistir à admiração dos outros, e o técnico é hoje o mais admirado dos homens. Dum lado, então, pelas espirais lógicas, o técnico farta-se de segurança, de certeza doutro lado enche-se de louvores. Suas manipulações dão certo. E quando não, ele ainda sorri, sabendo que tem recursos, ou para explicar, ou para retificar. Nas explicações o técnico, na sua esfera de ciência aplicada, não corre as angustiosas aventuras da ciência e contenta-se com os elos mais próximos. Tem um determinismo curto, míope, e vive um racionalismo de pequenos círculos. Quanto às retificações essas constituem um dos prazeres solitários na vida do técnico. Para ele o erro não é um elemento trágico; não dói. Antes faz uma pequena cócega diferencial e excitante. É bom fazer teoria de erros, aplicar fórmulas de Gauss, acuar probabilidades, trançar uma rede fina em papel milimetrado, e saber que o erro está ali dentro. O erro é esportivo, estimula o tono intelectual, serve para caracterizar a nobreza do método e a riqueza do instrumental. Quando um experimentador entra em contato com sua aparelhagem, a primeira coisa que faz é a teoria dos erros. Depois disso, sabe que só depende dele, de certos cuidados simples, o tranquilo convívio com aquela aparelhagem e a absoluta ausência de qualquer elemento trágico. A coisa mais desagradável que pode acontecer num ambiente de laboratório é ter de recomeçar; mas sempre é possível recomeçar.

Capa da obra: "A descoberta do outro", de Gustavo Corção.Tudo isso é assim mesmo e está bem; um indivíduo não precisa interromper sua leitura de galvanômetro para pensar na dor e na morte; mas corre o risco de levar esse critério para fora do laboratório. Sairá então cambaleando, ébrio de logaritmos e de papel milimetrado e chegará em casa nesse estado. Ora, eu vivi mais de quinze anos nessa intemperança, e as pessoas respeitáveis que conheci estavam convencidas que minha vida era um pequeno modelo de virtude porque não espancava a mulher e não deixava os filhos sem pão.

Realmente eu vivia nesse tempo dum modo ordinário e tranquilo. Tinha mulher e dois filhos e morava longe da cidade, no próprio lugar em que trabalhava, o que me permitia voltar à noite para o galvanômetro, depois que todos iam dormir. Era a melhor hora para mim; ninguém viria interromper meu transe técnico como era costume durante o dia por causa de pequenos acontecimentos caseiros. Ficava até meia-noite, uma hora, duas horas mexendo em fios e lâmpadas, mexendo naquela quadrícula do cosmos que era a minha mesa. No fim da noite, extenuado, ficava diante dos aparelhos, sem jeito de largar, a remoer os resultados. Não havia grande lucro nessa demora, mas uma espécie de obsessão me impedia de deixar o galvanômetro. Os dados do problema ficavam-me na cabeça, rodando, girando, indo e vindo, como uma melodia obstinada que a gente começa a assobiar e depois não consegue largar porque o fim emenda no princípio. E assim, quase todas as noites, eu ficava preso nesse assobiar mental, com quatro ou cinco pequenos resultados experimentais dançando-me monotonamente na memória fatigada. Quando fechada a sala e ia apagar a luz ainda me demorava no interruptor a olhar a mesa cheia de fios e válvulas. Não olhava porque me acudisse alguma ideia nova ou porque sentisse a presença de alguma solução inesperada: olhava por olhar; olhava porque era difícil não olhar.

Nos domingos eu ficava como o fumante obrigado à abstinência. O dia era da família; por uma fidelidade a esse princípio estabelecido eu me entretinha com a mulher e os filhos ou recebia visitas dos parentes. Mas o dia custava a passar, pesava-se; sentia-me à toa, ausente, exilado. As vezes conseguia escapar enquanto a mulher se distraía num serviço ou as visitas se empolgavam numa conversa sobre política; e ia fumar às escondidas alguns miliampères…

Ora, um dia, por causa de certo instrumento de música baseado em oscilações elétricas, que durante um ano tinha estudado e desenvolvido, minha vida mudou completamente de rumo. Primeiro conheci um padre, um franciscano, que me animou com entusiasmo; depois recebi de meu irmão o auxílio para montar uma oficina especialmente destinada à fabricação daquele instrumento, e o auxílio ainda maior para montar casa no Rio, deixando a colocação que me obrigava a viver longe da cidade. Mas saiu tudo diferente. Os projetos alteraram-se no próprio plano técnico, porque a oficina montada para fabricar órgãos eletrônicos recebeu outras encomendas melhores. O instrumento ficou para o canto, esquecido. Andei longos meses cheio de ressentimentos, compreendendo que a técnica deve se curvar diante de outros imperativos e não achando em mim aquele heroísmo dos inventores exemplares cujas histórias edificantes me tinham contado em menino. Além disso tinham surgido em outros continentes órgãos semelhantes e mais bem sucedidos. Fiquei em casa com o único modelo fabricado, e esse mesmo incompleto: ele atravancou minha sala durante três ou quatro anos, monumentalmente inútil. Não tinha ânimo para completar, nem coragem para desmontar. De quando em quando aquele padre franciscano vinha em nossa casa fazer um pouco de música sem perder a esperança de ver um dia acabado o instrumento que já era mais sonho seu do que meu. Mais tarde um pouco, cerca de um ano depois, o padre viria sem ser pelo órgão e, mais tarde ainda, eu poderia desmontar o instrumento porque dois ou três anos de trabalho árduos tinham encontrado razão de ser em um só minuto, tinham sido superabundantemente regados com um pedaço de pão.


Extraído da obra A descoberta do outro (4ª edição de 1952), de Gustavo Corção (1896 – 1978).
No ano de 2017, a Vide Editorial lançou uma nova edição do livro, cuja capa pode ser vista no interior deste artigo.


Nota da editoria:

Imagem da capa: “Lord Kelvin’s mirror galvanometer” (1876), obra em madeira entalhada criada por artista desconhecido.


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