“Há grandes homens que fazem com que todos se sintam pequenos.
Mas o verdadeiro grande homem é aquele que faz com que todos se sintam grandes.”
G. K. Chesterton (1874 – 1936).
Que estranha sensação me causa o atual estado das coisas.
Há muito tempo ouço dizer que o mundo está virado, que nada mais é como antes e que tudo já foi melhor. Sempre julguei que esse tipo de afirmação fosse coisa de velho, papo furado para puxar conversa ou puro saudosismo. Começo, porém, a achar que estava errado, ao menos em partes.
“O mundo muda, tudo evolui e se transforma, é assim mesmo”, pensei um dia, e não acho que estivesse totalmente equivocado, mas, sem dúvida, não imaginava a velocidade em que se dariam essas transformações, nem o tanto que impactariam a vida cotidiana das pessoas comuns. Entre o ir e vir do trabalho, da escola, da igreja, do lazer, existe agora uma gama de fatores complicadores que não estava ali há dez ou quinze anos, quanto mais a trinta ou quarenta.
Há de se pesar, obviamente, o fator da idade, uma vez que com ela vem a experiência e um olhar sobre o mundo que a ansiedade da juventude não nos permite ter. Com o passar do tempo, enxergamos a tudo com muito mais receio, mais desconfiança, e sei que isso deve ter acontecido com cada geração anterior, e acredito ser normal acontecer. Isto posto, há um adendo a ser feito: será mesmo que os nossos antepassados, mais ou menos distantes, tinham realmente tantos motivos para se preocupar como nós os temos agora? Duvido muito, e lamento que não tenha sido possível avisá-los: “Fiquem tranquilos, vocês não verão o pior”.
Seja como for, por mais anestesiado que esteja diante dos acontecimentos do meu tempo, enquanto adulto, pai de família e cidadão pagador de impostos, ainda não consigo estar completamente alheio aos absurdos do mundo de hoje. Basta estar vivo para ver como as pessoas estão estranhas, banalizando e adaptando ao seu dia a dia todo tipo de anormalidade. Uma rápida visita ao centro de qualquer grande cidade é o suficiente para que se faça a constatação. Não é mais possível distinguir os sexos, não existe mais qualquer cordialidade ou gentileza, não há incômodo com a falta de beleza por onde quer que se olhe, e não há diálogo racional algum. Até os cães e gatos foram elevados ao status de igualdade, e até superioridade, em relação ao ser humano: são os “filhos” daqueles que não fazem ideia da relevância divina que esta palavra encerra.
Além disso, ainda temos as notícias internacionais, a economia, as guerras, os conflitos, as revoltas, as doenças. “Mas tudo isso sempre esteve aí”, você poderá me confrontar, e com razão. A diferença, no entanto, é a completa histeria com que as pessoas, hoje, encaram tudo isso. A leitura dos acontecimentos é cada dia mais distorcida e corrompida, e tudo isso gritado em alto e bom som num megafone caótico chamado “redes sociais”.
Minha impressão é a de que o mundo sempre esteve sob um processo de enlouquecimento gradativo, mas agora descobriu seu jeito de acelerar freneticamente esse processo, e os que não o percebem, ou fingem não fazê-lo, é porque já perderam sua razão há muito tempo…
Dito isto, me vejo agora devendo desculpas ao leitor. Nada do que foi escrito aqui é novidade, correto? Não entreguei até agora nada que você não esteja cansado de saber. Você, que compartilha de meu desabafo, de minha desolação perante tudo que se vê atualmente, não foi surpreendido por este relato. Assim como eu, você acorda pela manhã, olha para o mundo ao redor, em uma ou outra hora qualquer do dia, e se pergunta o que está de fato acontecendo. Mas depois, sem respostas nem solução, segue sua vida, toca seus afazeres e tenta não enlouquecer, apoiando-se como pode no pouco de virtude que resta. Meu alerta é para que você se atente ao gigantesco massacre de mau gosto e loucura que nos sufoca e, principalmente, nos cega, mas não deixe que tudo isso o faça esquecer, aos poucos, do que já tenha visto ou sentido de belo e realmente emocionante nesta vida. O desaparecimento da beleza a olho nu, seja na moda, na arquitetura, na música ou na palavra escrita e falada, afastou de nós a sensibilidade para compreender o que de fato é importante, e este é o ponto onde quero chegar: o que realmente você viu que valha a pena ser lembrado, e que se sobrepõe a todo o caos e feiura que tomaram conta do mundo? Não falo de paisagens, viagens, filmes, shows ou eventos esportivos, mas de vida real, de acontecimentos de beleza incontestável, de cenas que sintetizam a existência de Deus, em vez de toda a futilidade que está sempre em constante evidência.
Eu, por exemplo, tinha 16 anos quando minha avó materna, Dona Malvina, faleceu de um infarto fulminante durante a madrugada. Eis meu primeiro contato mais próximo com a morte, que, assim inesperada, e tratando-se de um ente querido, pode ser um acontecimento terrível, ainda mais para aqueles que, como eu, dividiam a mesma casa com quem se foi. A ambulância foi chamada, a família toda avisada, mas nada mais podia ser feito: meu avô estava viúvo.
Seu Severino Arruda, nascido em Iacanga, no interior de São Paulo, era um filho de agricultores que perdeu a mãe aos 5 anos de idade, sendo depois renegado, aos 12, pela nova esposa do pai. Criado pelas irmãs, foi agricultor na lavoura de algodão até servir no Exército. Após a dispensa, casou-se, segundo ele, com a mulher mais bonita da cidade, e logo deixou a vida dura na roça para tentar a sorte em Santo André, no ABC paulista, onde viria a criar as quatro filhas. Trabalhou por 25 anos na fábrica de pneus Pirelli, e só não foi mais reconhecido profissionalmente pela falta de leitura, que o impedia de subir a cargos maiores.
Este homem forte, que após a aposentadoria aprendeu a fabricar vasos e jardineiras, montando sua própria oficina nos fundos da casa, onde viria a trabalhar quase até aos 80 anos, via-se agora sozinho, sem a companheira de tantas décadas. Ainda me lembro bem dos seus olhos vazios no dia após o ocorrido, e de como seu andar sempre firme, resquício dos tempos de militar, tornara-se desnorteado como se houvesse perdido o senso de direção. Foi chegada a hora do velório; muitas pessoas vieram dar seu último adeus a minha avó, e entre elas estiveram presentes os pais de meu pai, Dona Elza e Seu Mário Alfini, este último a peça que falta para completar minha história.
Meu avô Mário era filho de imigrantes italianos. Nascido em São Simão, também no interior de São Paulo, foi para Santo André ainda criança, junto dos pais e irmãos. Trabalhou por incríveis 40 anos na mesma empresa, a tecelagem Kovarick, onde chegou ao cargo de encarregado geral, inclusive presidindo o sindicato da categoria. Nos anos 50 fez parte do movimento do Rearmamento Moral, viajando por inúmeros países do mundo, como Inglaterra, França, Suíça, Alemanha, Holanda e até Senegal, acompanhando uma comitiva brasileira em palestras contra a expansão comunista. Era um homem duro, severo, que criou seus oito filhos com mão de ferro.
Até aquele fatídico dia, eu não me recordava de ter visto meus dois avôs em um mesmo local. Em minha cabeça pueril, eu os tinha como mundos diferentes, o que, de certa forma, eles de fato eram. Homens diferentes em vários aspectos, de personalidades diferentes e vidas que haviam tomado rumos diferentes, tinha em comum, porém, o trabalho como norte e a família como base — gente de uma outra época, um outro tempo em que um homem orgulhava-se do trabalho duro e não chorava à toa, e em que os sentimentos não eram tão facilmente externalizados.
Pois bem; eu estava sentado, em silêncio, num canto da sala de velório, sem saber que meus avós paternos chegariam, quando vi meu avô Mário entrando pela porta. Este, que era para mim o símbolo máximo de austeridade e firmeza, reconheceu-se agora na figura do outro, mesmo tendo sua companheira ainda ao seu lado, e, ao fazê-lo, pôs-se em lágrimas, ao abraçá-lo no gesto mais sincero que eu veria em toda a minha vida.
Ainda hoje me emociono ao recordar a cena que, admito, nada tem de especial para as outras pessoas — ora, o que pode haver de tão incrível em um abraço num velório? Mas sei bem o que aquele dia significou para mim, e sei bem qual foi o impacto de estar presente diante daquele acontecimento. Posso dizer, com a certeza de quem estava lá, que vi de perto dois grandes homens e, principalmente, dois legítimos exemplares de homens bons, compartilhando a dor de uma perda e dando substância real à palavra solidariedade, sem qualquer interesse ou compromisso, apenas dando e recebendo um abraço de consolo, porque era o mais humano que se podia fazer.
Acredito que meus avôs nunca mais se viram depois daquele dia. Mário morreu de causas naturais aos 92 anos de idade, três meses após a partida da esposa, depois de um casamento de sessenta anos. Severino se foi aos 98, dormindo.
O mundo pode ainda me surpreender todos os dias e, na maioria das vezes, negativamente, com seus absurdos surreais. Mas nada, absolutamente nada terá maior impacto em mim do que tudo o que senti quando aqueles dois senhores se encontraram. Deus estava ali, e foi isso que eu vi.
Mas e você? O que você realmente viu?
Por Douglas Alfini Jr.
Douglas é escritor, tendo como principais influências os clássicos do
romance e da literatura fantástica, bem como o cinema western.
A obra Crônicas do Invisível (2021) é seu livro de estreia.
Notas da editoria:
Imagem de capa “Solidariedade” (2021), por Aurelio Bentes Bravo.