O silêncio dentro da minha cabeça

Obra "Lonely in Paris" (2010), por Mary Tuomi.

Como a abelha trabalha na escuridão, o pensamento trabalha no silêncio e a virtude no segredo.
Mark Twain (1835 – 1910)



“O medo da solidão é o mal do século XXI.”

É com esta afirmação simples, de minha própria autoria, que inicio esta breve crônica, lembrando ao amigo leitor que o escritor que vos dirige a palavra mal sabe como fazê-lo. Dedico-me à ficção, e não aos artigos de opinião, categoria com a qual, confesso, não tenho a menor intimidade, inclusive invejando imensamente quem a tenha. Porém, resolvi me arriscar pelo fato de ter sido tomado, nos últimos dias, por uma angústia tamanha que me levou à necessidade de um grito: um “grito escrito”, por irônico que seja.

Venho reparando cada vez mais que o barulho, a zorra, a confusão ou qualquer outro sinônimo de bagunça tem se tornado a normalidade no espírito daqueles que me cercam, o que me preocupa imensamente. Vivemos na era do entretenimento, em que tudo parece ser um grande show itinerante a viajar pelo mundo, apresentando seu espetáculo ininterrupto de luzes e sons: YouTube, Whatsapp e uma gama de outras redes sociais multiplicam-se como bactérias, destinadas a todo tipo de interesse, para todo os gostos, vinte e quatro horas no ar, sem cessar. Nada mais desliga, nada mais se apaga, nada mais se cala, nada mais descansa.

Capa da obra: "Crônicas do Invisível", escrita por Douglas Alfini Jr.Me lembrei de quando era criança e adorava assistir aos desenhos animados. Mal acordava e já corria para a televisão, de modo a não perder os meus favoritos, pois, se o fizesse, só os teria novamente no dia seguinte. Havia uma alegria embutida nesta ideia que vai muito além da diversão de assistir ao desenho. Era a alegria da espera, o prazer de acompanhar a história e a satisfação de terminá-la: “Agora já posso ir brincar, ir à escola, seguir meu dia — já assisti aos desenhos que tanto gosto!”. Mas hoje, este prazer sutil da espera por uma abertura, ou do ápice de uma trama até seu encerramento, já não existe. As crianças não querem — e se quisessem já quase não os encontrariam — assistir desenhos animados na TV. Elas preferem os vídeos, os quais elas próprias escolhem e que não dependem de um horário de programação, mas estão lá o tempo todo e podem ser vistos de uma só vez, repetidos infinitas vezes, indo e voltando o quanto quiserem. A simplicidade dos rituais para se fazer o que se gosta foi extinta, os horários foram eliminados; é um verdadeiro looping de acontecimentos o dia todo, que só se intensifica para aqueles que possuem, por exemplo, um “smartphone”, provavelmente através do qual você está lendo este texto. Se sou contra a tecnologia? Absolutamente! É óbvio que também tenho o meu; afinal, sou praticamente obrigado a isto por motivos tão óbvios que não preciso citá-los. Ou eu conseguiria, hoje, falar com o gerente da minha conta bancária da maneira mais simples senão por um chat aberto em um aplicativo? Apenas lamento que as pessoas abram mão do mundo lá fora em favor de uma tela, de um “contato virtual”, da escravidão de ter que responder imediatamente à mensagem instantânea de um amigo perguntando qualquer coisa banal, do som incessante que as impede de se ouvir a si mesmas…

Nada mais consegue ser calmo, relaxante, compassado. O mundo corporativo e o mercado de trabalho em si são cada vez mais estressantes e cheios de pressões, e como as pessoas se aliviam de tudo isso em seu tempo livre? Com certeza não é lendo um bom livro, nem ouvindo música de qualidade, mas sim voltando a fazer o que fazem o dia todo, ou seja, enfiando literalmente o nariz na tela de um celular para atender aos pedidos desesperados de resposta no Whatsapp, ou ler comentários inúteis em uma foto no Instagram. A ansiedade do imediato vai corroendo o intelecto e a alma até o ponto em que essas pessoas já nem saibam que os possuem.

Tudo me leva a crer que exista uma campanha velada contra o silêncio, aquele bom e velho silêncio que se faz presente de maneira imprescindível no cinema, no teatro, na biblioteca, na igreja, no sono, nos estudos. É muito fácil observar, em qualquer desses ambientes em que o normal seria certo respeito ao amigo silêncio, a agonia estampada no rosto de quem não pode usar seu celular abertamente, apelando para rápidas olhadelas e retirando seguidamente o aparelho do bolso, como se fossem todos médicos socorristas à espera de um chamado. Mas confesso que esse desrespeito ao que é de bom tom nos locais públicos nem é o que mais me aflige; este é apenas um simples reflexo da pura falta de educação que, como brasileiros, conhecemos bem. Preocupa-me, de fato, a total defenestração dos momentos possíveis de um silêncio renovador, íntimo, inspirador, necessário ao corpo e ao espírito, que as pessoas simplesmente não mais se permitem, imagino eu, sequer no próprio lar.

Os livros não podem ser longos, os filmes não podem ter muitos diálogos — tudo deve acontecer o mais rapidamente possível, pois é preciso compartilhar com alguém, expor à rede; o medo de estar offline e perder a opinião alheia é sufocante. 

Estar a sós consigo mesmo, sem falar com alguém, sem saber a opinião de alguém sobre alguma coisa, parece ser impossível a esta geração atual. São tantas possibilidades, tantas opções, tantos canais, tantas pessoas a um simples toque de distância, que parece não valer a pena estar na própria companhia por um segundo que seja. Os livros não podem ser longos, os filmes não podem ter muitos diálogos — tudo deve acontecer o mais rapidamente possível, pois é preciso compartilhar com alguém, expor à rede; o medo de estar offline e perder a opinião alheia é sufocante. A solidão da própria companhia por um único instante, mesmo que devido à concentração em determinada tarefa, é muito, muito incômoda, porque essas pessoas já nem ao menos gostam de si mesmas; na verdade, parecem odiar-se ao ponto de que escutar os próprios pensamentos se torne um martírio. Afinal, trata-se dos seus pensamentos, e o que é seu não interessa mais, pois está apenas “na sua cabeça”, não podendo ganhar um like de aprovação à vista de todos.

“O medo da solidão é o mal do século XXI” — que frase mais pueril para se iniciar um artigo. Lendo-a novamente, agora, acho até que é inapropriada. O mais correto seria: “O medo de si próprio é o mal do século XXI”. Talvez eu já esteja contaminado por este mal, e ele mesmo tenha me levado a escrever este desabafo — este “grito”, como disse acima — esperando pelo like imaginário da aprovação de quem pense como eu. Mas, enfim, artigos nem são mesmo a minha praia, e antes que tudo se torne ainda mais confuso do que o barulho lá de fora, prefiro voltar para o lugar onde ninguém mais quer estar: o silêncio dentro da própria cabeça.


Por Douglas Alfini Jr.

Douglas é escritor, tendo como principais influências os clássicos do
romance e da literatura fantástica, bem como o cinema western.
A obra Crônicas do Invisível (2021) é seu livro de estreia.


Nota da editoria:

Imagem da capa: “Lonely in Paris”(2010), por Mary Tuomi.


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Ani

Crônica maravilhosa dos tempos atuais!!!

Angelica

Simplesmente perfeito.

Shirley

Muito bom texto a partir do ” Nada mais consegue ser calmo”. Talvez porque o autor pare um pouco de falar de si mesmo e comece a filosofar sobre o assunto. Excelente análise da triste realidade que nos cerca. 🙂

Danila

Falou tudo! Parabéns pelo texto Douglas!

Gumercindo

Parabéns seu artigo é a realidade que vivemos, somos cada dia tomados pelo dúvida de quem realmente somos.

Sueli Maria Lopes Galvão de Souza

Que reflexão maravilhosa!
Gratidão pela sensibilidade em trazer algo tão profundo e real.

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