Seu cérebro é realmente necessário?

Obra: "Anatomy lesson of Dr. Willem" (1617), por Michiel Jansz van Mierevelt (1566 - 1641)

Excerto da obra “A alma do embrião humano”,
do padre Luiz Carlos Lodi da Cruz.

A obra pode ser obtida gratuitamente aqui (edição de 2013):

https://www.providaanapolis.org.br/images/artigos/AlmaEmbr.pdf.



O título acima é o de um artigo publicado em 1980 na revista Science1, que relata pesquisas feitas pelo neurologista britânico John Lorber em pacientes portadores de hidrocefalia. Eis um trecho particularmente interessante:

‘Há um jovem estudante desta universidade [Sheffield]’, diz Lorber, ‘que tem um QI de 126, ganhou prêmios como melhor aluno em matemática, e tem vida social completamente normal. E no entanto o rapaz não tem praticamente nenhum cérebro’. O médico do estudante na universidade notou que o jovem tinha uma cabeça ligeiramente maior que o normal, e relatou isso a Lorber apenas por curiosidade. ‘Quando fizemos um exame de cérebro nele’, Lorber recorda, ‘vimos que em vez do tecido cerebral normal de 4,5 centímetros de espessura entre os ventrículos e a superfície cortical, havia somente uma fina camada de cobertura medindo pouco mais de um milímetro. Seu crânio é preenchido principalmente pelo fluido cerebrospinal’ 2.

Lorber fez mais de 600 exames em pacientes com hidrocefalia e classificou-os em quatro categorias. A mais severa era aquela em que a expansão dos ventrículos atingia 95% do crânio:

Muitos indivíduos deste último grupo, que forma apenas 10 por cento da amostra total, são gravemente deficientes, mas metade deles tem QI maior que 100. Esse grupo fornece um dos exemplos mais dramáticos de função aparentemente normal contra todas as probabilidades 3.

De suas observações, Lorber concluiu que “o córtex provavelmente é responsável por muito menos do que a maioria das pessoas imagina” 4.

Comparação entre o cérebro de uma criança normal e de uma anencéfalaMais grave que a hidrocefalia, que ainda conserva intacto o crânio, é a anencefalia, anomalia que consiste na “ausência completa ou parcial da calota craniana e dos tecidos que a ela se sobrepõem e grau variado de má-formação e destruição dos esboços do cérebro exposto” 5.

O anencéfalo tem, porém, o tronco cerebral, constituído principalmente pelo bulbo, que é um alongamento da medula espinhal. Controla importantes funções do nosso organismo, entre elas: a respiração, o ritmo dos batimentos cardíacos e certos atos reflexos (como a deglutição, o vômito, a tosse e o piscar dos olhos). Seria o anencéfalo privado de sensação e consciência? O Comitê Nacional de Bioética do governo italiano não aceita essa afirmação categórica. Sua posição baseia-se no fenômeno da adaptação dos neurônios ou neuroplasticidade:

Está ocorrendo um debate vivaz sobre a potencialidade do encéfalo na idade neonatal. Uma notável capacidade de adaptação, mesmo em condições patológicas muito graves, é reconhecida nos primeiros dias de vida, nos quais os fenômenos da neuroplasticidade parecem particularmente ativos e válidos.

[…]

Não se trata, obviamente, da possibilidade do tronco de substituir as funções do córtex ausente, mas de admitir que a neuroplasticidade do tronco poderia ser suficiente para garantir ao anencéfalo, ao menos nas formas menos graves, uma primitiva possibilidade de consciência. Deveria, portanto, ser rejeitada a afirmação de que o anencéfalo, enquanto privado dos hemisférios cerebrais, não é capaz de ter consciência e de sentir sofrimento ‘por definição’ 6.

O parecer do Comitê fala da possibilidade de consciência “ao menos nas formas menos graves”. E nas formas mais graves?

Obra: "A alma do embrião humano", de Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz.No dia 1º de agosto de 2008, sexta-feira, às 22 horas, na Santa Casa de Misericórdia de Franca (SP) morreu Marcela de Jesus Ferreira, quebrando todos os recordes de sobrevivência de uma criança anencéfala. Os anencéfalos costumam ter uma breve vida extrauterina. Segundo o citado Comitê, “foi relatado um caso único de sobrevivência até 14 meses e dois casos de sobrevivência de 7 a 10 meses, sem recorrer à respiração mecânica” 7. Marcela, porém, nascida em Patrocínio Paulista (SP) em 20 de novembro de 2006, faleceu após 1 ano, 8 meses e 12 dias de nascida. Sua morte por pneumonia aspirativa nem sequer teve relação direta com a anencefalia. Eis as palavras de sua pediatra Márcia Beani:

Achávamos que ela teria algum tipo de problema no futuro, pois com o desenvolvimento do corpo, ela poderia sofrer de falência múltipla dos órgãos, em razão da ausência cerebral. No entanto, a morte pela aspiração do leite poderia ocorrer com uma criança sadia, por exemplo, e nada tem a ver com o problema que a Marcela apresentava 8.

Marcela impressionou não só pela sua sobrevida, mas pelo fato de sua má-formação ser severa. Os hemisférios cerebrais eram, de fato, ausentes, com exceção de um pedacinho do lóbulo temporal. E, no entanto, ela manifestava sentimentos e consciência, como declarou sua pediatra à imprensa quando a menina completava seis meses de nascida:

Segundo a médica, na teoria, uma criança anencéfala não teria dor, fome, sentimento, frio. ‘Mas a Marcela prova justamente o contrário, pois ela tem frio, dor, sente a presença da mãe, chora quando tem desconforto, emite sons e respira um bom tempo sem o auxílio do aparelho de oxigênio’. Ela lembra que a bebê só tem o tronco cerebral, que a mantém viva 9.

No imaginário transporte em visão de Santo Tomás de Aquino ao século XXI, os fatos acima fariam o Doutor Angélico reexaminar a importância por ele dada a certos órgãos, como o coração e o cérebro. De fato, ele dissera: “o nome homem significa algo que tem um coração, um cérebro e outras partes símiles sem as quais não poderia ser um corpo animado com uma alma racional” 10. A simples presença do cérebro, porém, não é suficiente, segundo o Aquinate, para mover os membros nem para exercer a razão. Requer-se um cérebro maduro, livre de excessiva “umidade”:

É natural que, em razão da extrema umidade do cérebro nas crianças, os nervos, instrumentos do movimento, não estejam aptos para mover os membros 11.

O uso da razão depende, de certa maneira, do uso das potências sensíveis. […] Nas crianças, há um impedimento destas potências em razão da excessiva umidade do cérebro. Daí que nelas não há um uso perfeito da razão, tampouco dos outros membros 12.

Mas, como adverte Elio Gentili,

parece necessária grande cautela em identificar, como faz Suarez seguido por Lanza, órgãos indispensáveis para a presença da alma: é fato que o coração pode ser substituído por uma bomba artificial, que um animal pode ao menos por algum tempo sobreviver sem fígado, que amplas zonas do encéfalo podem ser retiradas sem causar a morte; e não parece inconcebível que no futuro se chegue ao ponto de suspender temporariamente todas as conexões encefálicas sem por isso fazer cessar a vida de um homem. 13.

De fato, “as atividades funcionais do vivente não são ligadas aos órgãos somente, mas a sistemas ubiquitários (pense-se no sistema imunitário, nervoso, hormonal, vascular)” 14. Além disso, “os animais mais rudimentares (os protozoários) são capazes de sensação (tátil) sem, no entanto, possuir um sistema nervoso” 15.


Por Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz.
O autor é presidente da Associação Pró-Vida de Anápolis.


Notas:

  1. R. lewin, “Is your brain really necessary?”, Science 210 (1980), p. 1232-1234. Subir
  2. R. lewin, “Is your brain…”, p. 1232. Subir
  3. Ibid., p. 1232. Subir
  4. Ibid., p. 1233. Subir
  5. Comitato Nazionale Per La Bioetica, II neonato anencefalico e la donazione di organi, 21 giugno 1996, in http://www.governo.it/bioetica/pdf/24.pdf [30-03-2012], p. 9. O Comitê Nacional para a Bioética do governo italiano é composto por estudiosos das mais diversas áreas, em coerência com a natureza intrinsecamente pluridisciplinar da Bioética: médicos, juristas, psicólogos, sociólogos, filósofos. Subir
  6. Comitato Nazionale (Italiano) Per La Bioetica, Il neonato anencefalico…, p. 15. Subir
  7. Ibid., p. 11. Subir
  8. F. Saraiva, “Bebê sem cérebro morre ao se engasgar com leite com 1 ano e 8 meses”, Diário de S. Paulo. 3 ago. 2008, in http://extra.globo.com/noticias/brasil/ bebe-sem-cerebro-morre-ao-se-engasgar-com-leite-com-1-ano-8-meses-552336.html [30-03-2012]. Subir
  9. Menina completa 6 meses. Correio Braziliense, Brasília, 21 maio 2007, p. 8. Subir
  10. S. Tomás de Aquino, De potentia, q. 9, a. 4, corpo. Subir
  11. S. Tomás de Aquino, Suma teológica, I, q. 99, a. 1, corpo. Subir
  12. Ibid., I, q. 101, a. 2, corpo. Subir
  13. E. Gentili, “Il momento dell’animazione razionale. Studio sistematico”, La scuola cattolica 92 (1964), p. 237. Subir
  14. P. Ide, Le zygote est-il…, p. 197. Subir
  15. Ibid., p. 186-187. Subir

Nota da editoria:

Imagem da capa: “Anatomy lesson of Dr. Willem” (1617), por Michiel Jansz van Mierevelt (1566 – 1641).




Confira, neste áudio, alguns comentários do filósofo Olavo de Carvalho (1947 – 2022) sobre fatos que evidenciam a desnecessidade do cérebro na produção de consciência:


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