Eu acordo cedo. E, a cada dia que passa, venho acordando ainda mais cedo, só para poder esperar mais. Esperar pelo despertar daquele que, quando acordar, fatalmente irá, um segundo antes até mesmo de abrir os olhos, me procurar. Procurar na intenção pura e simples de me pedir algo, qualquer coisa, possível ou não, desta realidade ou de outra, da sua própria em que ninguém mais esteve, só para testar até onde vai minha capacidade de atendê-lo, como se eu fosse capaz de qualquer coisa. E eu, aflito como estava, acordei cedo para esperar o pedido; pedido este que não será o único do longo dia, será só o primeiro de uma série de outros, corriqueiros e muito menos importantes do que este: o primeiro, o especial primeiro pedido.
Eu, fruto de minha época, cheio dos defeitos que não enxergo — e não enxergo unicamente por pertencer a ela, esta estranha época em que todos sentem-se cada vez mais como míticos seres de luz e menos como servos, uma verdadeira horda de deuses cegos que preferem sua cegueira contemporânea compartilhada ao doce e generoso ato de servir —, luto contra as influências, visíveis e invisíveis, políticas, sociais e sobrenaturais, apenas para poder, desprendendo-me de meu orgulho humano e masculino, ainda atender àquele pedido.
Ah, como lamento por aqueles que acordam tarde… não têm um único pedido especial pelo qual aguardar antes que o sol se ponha, e, por isso, dormem seu longo sono mentiroso e solitário, descansando o corpo para enganar a alma.
Eu não: eu acordo cedo. Acordo cedo na esperança de, quem sabe, conseguir um espaço dentro da sua realidade, aquela realidade que de tão imaculada não me permite entrar por completo, mas apenas espiar, por uma fresta, toda imensidão do mais puro amor de Deus refletido em sua inocência, através daquele pedido.
Está escuro. Ele, em sua cama, dorme o sono tranquilo que tão bem me recordo um dia também ter desfrutado; o sono de quem não conhece o pecado, de quem está mais próximo de Deus pelo simples fato de não saber, de não precisar saber. Eu, fruto de minha época, com meu coração doído e preocupado, sozinho desperto na penumbra da noite, porque cheguei mais uma vez antes do sol, à espera de suas surpreendentes primeiras palavras do dia, sempre ainda carregadas de sonho, de beleza, de lindas paisagens e de maravilhosas aventuras em terras distantes, ou de qualquer outra coisa impossível de ser imaginada por mim, alguém tão mais distante de Deus do que ele.
Falta pouco. Ele também acorda cedo. Sinto que, inconscientemente, ele, assim como eu, aguarda ansioso por este momento: o momento de compartilhar comigo tudo aquilo que viu e sentiu naquele lugar onde não me é mais permitido entrar, mas que posso experienciar, ao menos um pouquinho, através do presente de sua existência.
Em silêncio o observo, ele sente minha presença. Não é preciso dizer nada, não é preciso fazer nada. A qualquer segundo meu menino vai acordar, o filho que Deus me deu, para me dizer tudo aquilo que eu preciso ouvir, para me fazer lembrar d’Ele a cada momento em que eu viver.
Os olhos se abrem na mesma fração de segundo em que os lábios se movem. Ele sabe: o pai está ali. Enfim minha espera acabou! Não estou mais sozinho, a penumbra se foi ao despertar do menino, junto do sol. Não há limites para o que me espera, minha missão é sempre além das expectativas. Posso ter que ir à Lua num foguete junto dele, ou caçar uma fera desconhecida numa floresta distante. Às vezes, porém, o pedido é mais simples, e tudo o que ele quer é o absurdo de um sorvete de chocolate antes do café da manhã. Quem sabe? Meu papel não é entender, mas sim o de compartilhar, porque, afinal, eu posso tudo, enquanto ele acreditar. E se a Lua está distante, eu dou um jeito de trazê-la até o quarto, e a tal fera, que leve o tempo que for, mas é minha obrigação encontrá-la. Se ainda é cedo para o sorvete, por que não mais tarde? Nós podemos imaginá-lo juntos, em todos os seus detalhes, até que seja a hora…
Mas e hoje? E agora? Qual será o pedido que me espera? Um sorriso arrebatador precede as palavras ditas com o cuidado de quem não quer errar ao escolhê-las:
“Pai, fica sempre aqui comigo?”
Por Douglas Alfini Jr.
Douglas é autor das obras Crônicas do Invisível (2021) e Âmbar Gris (2023):
Notas da editoria:
Imagem de capa: “Sleep” (1887), por Abbott Handerson Thayer (1849 – 1921).
Texto maravilhoso, só quem tem filhos para entender