A alegoria do mendigo gordo

Obra “Fat Guy”, por Patrick Rafferty

Se o Estado é forte esmaga-nos; se é fraco perecemos.
Paul Valéry (1871 – 1945)



Havia um país tropical distante, onde os desastres naturais não se criavam. Sua terra era fértil e seu povo era o mais hospitaleiro dentre todos os povos. Seus homens e mulheres eram tão afeitos ao trabalho que não existia sol escaldante que os afastasse da labuta diária. Tanto esforço, unido às privilegiadas condições da natureza, faziam que aquela nação crescesse de maneira quase orgânica, sem a necessidade de uma liderança organizada ou um plano mercantil elaborado. A fartura era a marca registrada daquela terra de povo feliz, que por não ver faltar nada em sua mesa, vivia em constante festa, ignorando tudo mais que os fizesse evoluir — afinal, já estavam satisfeitos demais pelo que tinham.

A fama daquele paraíso se espalhou pelos quatro cantos, e logo as pessoas de todo o mundo se interessaram por conhecer o país emergente. Junto dos bons visitantes que se encantavam por tanta beleza natural e deixavam de bom grado seu dinheiro de turista naquele lugar, vieram também alguns indesejáveis forasteiros. E foi assim que aquele povo de largo sorriso recebeu seu primeiro pedinte. Um mendigo triste e feio, esquizofrênico e sorrateiro, que espalhava seu cheiro forte pelo ar, por onde passava.

Capa da obra: "Crônicas do Invisível", escrita por Douglas Alfini Jr.Os cidadãos, bondosos como eram, assim que o viram vagando pelas ruas compadeceram-se de seu semblante sofrido e olhar desolado, apressando-se em oferecê-lo suas sobras, que eram fartas e nutritivas. Aquele homem de figura deplorável e silenciosa logo viria a reconhecer ali, de maneira sagaz, uma grande oportunidade, tornando-se presença constante à frente dos estabelecimentos e na porta das casas. Com o passar do tempo, as saborosas sobras do povo festeiro mudaram a vida do vagabundo, que passara a exibir para fora das calças, orgulhoso, uma protuberante barriga saliente. Cada vez mais exigente no paladar e mais arrogante nos agradecimentos, negava qualquer oferta de trabalho e partia imediatamente para outra casa que lhe servisse sem maiores rodeios. Nesta levada, ele engordava e engordava, e sua fama de mendigo gordo, assim como a fama daquele povo trabalhador, festivo e hospitaleiro, continuou a se espalhar.

Como ratos encantados por um flautista, outros mendigos vieram, atraídos pela história do lugar que abrigava um pedinte farto. E aquele povo — que, além de todas as suas qualidades, era também extremamente pacífico — alimentou a cada um deles sem reclamar, deixando-os assim todos muito gordos, tal como haviam feito ao primeiro.

E tudo permaneceu desta forma até chegar, enfim, o dia em que as sobras já não eram suficientes para suprir as necessidades de um verdadeiro exércitos de mendigos famintos. O povo tímido, que não sabia dizer “não”, precisou dobrar sua produção e diminuir o próprio consumo para sustentar seus esmoleiros, os quais, por sua vez, continuavam recusando trabalho e partindo sempre rumo à próxima família que lhes alimentasse rapidamente, apenas de modo a livrar-se o quanto antes de sua presença incômoda.

E aquele povo feliz seguia como sempre fora, festivo e hospitaleiro, mas agora em menor número. Trabalhavam muito mais, debaixo do sol escaldante, enquanto os mendigos e suas mulheres multiplicavam-se e espalhavam seus filhos pelas cidades, os quais já nasciam exigentes, formando colunas e elegendo líderes para organizar suas frentes e não perder o controle da mendicância. A comida já não era mais assim tão farta na mesa das casas, e a nova geração de pedintes, evoluída em sua própria natureza, não mais se conformava com as primeiras negativas, e não apenas ignorava as ofertas de trabalho, mas, na verdade, ofendia-se profundamente com elas, tomando à força o que lhe era recusado.

Já organizados como movimento e mais imponentes em seu discurso, exigiam respeito e não mais aceitavam ser chamados de mendigos. Decidiram por uma nova nomenclatura que os reconhecia simplesmente como “os excluídos”, e agora, qualquer um que não os tratasse como tal era punido pelas novas leis — que eles mesmos haviam criado. Afinal, enquanto o povo feliz se ocupava com seu trabalho incessante, os miseráveis criavam normas e colocavam-nas em prática, tomando por completo o controle daquela terra próspera, habitada por uma gente pacata que, de tão satisfeita com as dádivas com que fora presenteada por Deus, tornou-se acomodada e avessa ao conhecimento, engordando a escória que os dominava sem nem perceber.

Obedecendo às suas normas, viriam a eleger o mendigo gordo, esquizofrênico e sorrateiro, que eles próprios criaram, líder supremo daquela terra antes maravilhosa, mas agora já falida, na qual os famintos excluídos, como os parasitas que são, fizeram sua morada, sem encontrar qualquer resistência, enquanto defecam em suas ruas, invadem suas casas e roubam o fruto de seu trabalho, sendo sempre recebidos pelo sorriso no rosto de quem tem por tradição uma sádica vocação à autossabotagem e à ignorância.


Por Douglas Alfini Jr.

Douglas é escritor, tendo como principais influências os clássicos do
romance e da literatura fantástica, bem como o cinema western.
A obra Crônicas do Invisível (2021) é seu livro de estreia.


Nota da editoria:

Imagem da capa: “Fat Guy”, por Patrick Rafferty.


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