“Na medida em que você se desliga do espírito daquela era, está ligado ao espírito de todas as eras.
Isto quer dizer que, de fato, na constituição do próprio indivíduo, já está dada toda a dialética entre
o mundo do sensível ou da temporalidade e o mundo da eternidade.”
Olavo de Carvalho
A imortalidade de que se fala nas academias, ou nos comentários tecidos em torno de um grande morto, como acontece agora com Hemingway, é aquela que Augusto Comte chamava de imortalidade subjetiva, e que consiste na sobrevivência, não da pessoa, mas das obras e dos passos. Essa imortalidade comporta graus, conforme seja maior ou menor o rumor que o finado tenha feito em torno de si. Há nomes sonoros que ficam na lembrança dos povos por séculos e séculos, enquanto outras vidas mais leves, mais silenciosas e cinzentas logo se apagam, às vezes no próprio mundo familiar. Lembra-me aqui um amigo que morreu deixando um magro legado de ressonâncias. Tão obscuro, tão pouco consequente fora que até um dia aconteceu-me, encontrando a viúva, abrir a boca para perguntar notícias do Belmiro, já morto, mais morto do que um prego de caixão de defunto como dizia Dickens. Calei-me a tempo quando recapitulei rapidamente a história póstuma do amigo. Deixara filhos e viúva, mas por uma ironia da sorte a viúva recebeu uma herança, empregou-se num desses cargos em que se ganha muito e pouco se faz, como tantos há nesta República, e assim a família conheceu melhor padrão nos dias de luto. Um ano depois a viúva namorava um guapo peruano que acabou de apagar na memória de todos a lembrança fugaz do pobre Belmiro. Lembro-me de um pormenor curioso da história do apagamento do Belmiro: um dia, trazendo os filhos para o colégio, de automóvel, entrou de mau jeito, como aliás frequentemente o fazia, e tirou um pedaço, um pequeno pedaço do pilar do portão. Ficou aquela marca discreta, de que, ao cabo de algum tempo, suponho, só eu conhecia a causa. E sempre que passava por ali, e que via o arranhão na alvenaria, evocava a figura de Belmiro. Um dia, veio um pedreiro, recompôs o pilar, e com essa pá de cal desapareceu o último vestígio interessante de uma vida vivida meio século.
Creio que a ninguém escapa o ridículo que sempre acompanha esta tal imortalidade subjetiva, mesmo quando a figura imortalizada é imponente e o traço deixado na casca do planeta é um pouco maior do que um risco na cal. Ainda outro dia estive a ruminar meditações deste tipo diante de uma estátua que o escultor concebera e realizara em atitude oratória e que, exposta ao aguaceiro, tinha um aspecto lamentável.
Entretanto, apesar dessa carga de ridículo, a humanidade se obstina em guardar as lembranças dos mortos, e nós mesmos, se nos sondarmos com lealdade, descobriremos um esquisito desejo de sobrevivência na memória dos outros. De que nos vale isto? De que me vale meu nome pronunciado aqui ou acolá, com tais ou quais atributos, se eu não estou aqui ou acolá, pessoalmente, sobrevivente?
O fato é que apesar dessa pobreza de significação pessoal, desse caráter acidental, a sobrevivência pelas obras corresponde a um profundo desejo de nosso ser. Ninguém quer passar a vida em branca nuvem. Ninguém quer morrer como o poeta disse que morrem os pássaros. Mas a verdade é que é esse instinto de sobrevivência, digamos horizontal, que nos impede a visão da outra imortalidade, a vertical, a que tem dimensões de eternidade e não dimensões de história, à qual também corresponde um grande anseio de nossa alma, que tem horror à morte, à ideia do aniquilamento da pessoa, e que se insurge em cada caso, diante de cada defunto, como se estivesse vendo um espetáculo de espantosa raridade. O caso é que a alma humana tem profundidades de inconsciência em dois sentidos. Diria até dois hemisférios, um voltado para a terra e outro voltado para o céu. Num desses hemisférios a ideia de imortalidade da alma brilha como uma estrela; no outro, entretanto, levantam-se obstáculos erguidos pelas exigências da sensibilidade. É por isso que nos parece fria e distante a consideração filosófica em torno do assunto. Disse Edgar Poe que não custou muito a ver que jamais se convenceria de sua própria imortalidade se tivesse de aceitar as demonstrações filosóficas. Pagando o seu tributo ao empirismo triunfante na atmosfera cultural de seu tempo, Edgar Poe diz brutalmente: «… he (the man) will never be so convinced by the mere abstractions which have been so long the fashion of the moralists of England, of France, and of Germany» 1.
Que quer isto dizer? Será assim tão inoperante, tão pouco convincente a demonstração filosófica? Será a razão tão pobre ou tão fria diante da vida? Na verdade, estamos diante de um problema típico, ou melhor de um tratamento típico dado a um problema espiritual pelo empirismo, podendo ser este da espiritualidade e decorrente imortalidade da alma, ou o da existência de Deus. Quando alguém diz categoricamente que as demonstrações filosóficas não convencem intelectualmente, ele quer dizer que tais demonstrações não satisfazem à sensibilidade. Quer dizer que não sacia a fome, não apazigua o sexo, não tranquiliza os nervos, não atende em suma a exigências que vêm de todo o dinamismo da sensibilidade. Seria pueril zombar de tais exigências e fazer parada de espiritualidade alambicada e inteiramente desprendida daqueles laços. Mas também é pueril pedir à inteligência um tipo de alimento que não lhe compete preparar. É claro, claríssimo, que ninguém se lembrará de ler uma página filosófica para o pai que chora diante do cadáver do filho. Mas também é claro que nesta mesma hora o pobre pai não entenderia uma demonstração de geometria. Será defeito da geometria? Ou será mais fácil pensar que a situação emocional, sensibilizada, responde pela momentânea incapacidade?
A filosofia é mais difícil do que todas as geometrias juntas, e para se tornar operante e convincente numa alma é preciso que essa alma trabalhe longamente para se desobstruir do empirismo. Assim, a ideia de imortalidade da alma, que vale a pena ser desempatada, tem de ser apresentada ao espírito muito antes da emoção, da perturbação, para que na hora oportuna ela tenha algum valor vital.
Vale à pena desempatar esse problema, e procurar entrever, através de nossos obstáculos, as novas dimensões da eternidade. A imortalidade verdadeira, pessoal, essencial, não se distribui pelas pessoas em graus proporcionados ao sucesso da vida. É ao contrário um atributo da alma espiritual, e portanto um denominador comum de toda a humanidade. E se assim é, segue-se que a sorte do homem, referida aos eixos da eternidade, deveria dominar todas as cogitações da vida terrena, e não estar relegada à categoria de assunto que serve para consolo nas câmaras ardentes e logo em seguida é esquecido. Vale à pena desempatar este problema que nada tem de relativo. Ou somos dotados de alma espiritual ou não somos. Ou somos criaturas com vocação de eternidade, ou não somos. Uma das mais inacreditáveis contradições da condição humana é justamente a do pouco caso com que tratamos as coisas mais relevantes; mas ainda mais espantosa atitude é a daquele que se alegra com a divisão de opiniões em todos os assuntos, inclusive nesses de máxima relevância. E ainda mais incompreensível, nessa progressão geométrica de disparates, é o fato de passar por muito inteligente quem relativiza todas as categorias intelectuais e alegremente desiste de pensar.
Vale à pena tirar a limpo o x da sorte do homem; mas para isto temos de seguir um caminho inteiramente diverso do experimentalismo procurado por Edgar Poe, no conto de onde tiramos a passagem acima transcrita. O caminho da descoberta dos valores de eternidade é o da purificação e o da ascensão da inteligência e da vontade espiritual, e até o da renúncia de qualquer perpetuidade na memória do mundo. Na mente do santo, o mais vertical dos homens, tudo se refere à vida eterna que por sua vez se refere a Deus. Nós outros, por nossos pecados, por nossa gulodice de instantes de vida, pela impureza de nossos critérios, temos apenas lampejos, e às vezes nem a isso damos uma pequena parte de nossa atenção.
Escrito por Gustavo Corção (1896 – 1978).
O autor, nascido na capital fluminense, foi escritor, católico e membro da antiga UDN.
O texto foi obtido no website do Movimento Permanência.
Nota:
- “…ele (o homem) nunca ficará tão convencido pelas meras abstrações que têm sido por tanto tempo a moda dos moralistas da Inglaterra, da França e da Alemanha.”
Notas da editoria:
Imagem da capa: Três gerações (1897), do artista americano Charles Marion Russell (1864 – 1926).