Amando as coisas certas

Bolha Congelando

O sentimento segue aquilo que amamos. Se amamos o que é verdadeiro, bom e belo, ele nos conduzirá para lá. O problema, portanto, não é sentir, mas amar as coisas certas. Do mesmo modo, o pensamento não é guia de si próprio, mas se deixa levar pelos amores que temos.

Sentir ou conhecer, nenhum dos dois é um guia confiável. Antes de poder seguir qualquer um dos dois, é preciso aprender a escolher os objetos de amor – e o critério dessa escolha é: quais são as coisas que, se dependessem de mim, deveriam durar para sempre? Há coisas que são boas por alguns instantes, outras por algum tempo. Só algumas são para sempre
.”

Olavo de Carvalho (1947 – 2022)



Eu conversava, ainda hoje, no carro, sobre esse assunto. O professor Olavo tentava dizer, nessa passagem, extraída de uma de suas aulas, o quanto, nos dias de hoje, perdeu-se a capacidade de prezar, buscar, preservar e perpetuar as coisas que são realmente boas, belas e verdadeiras.

Na efemeridade do presente, o prazer precisa ser imediato, o desejo deve ser prontamente satisfeito, nenhuma gratificação pode ser adiada ou negada. O homem moderno quer tudo para ontem, age como se o mundo fosse terminar amanhã, e assim agindo, vai-se dessensibilizando, perdendo a capacidade de análise e de avaliação.

Afinal, como saber o que realmente vale a pena perseguir, aguardar, manter e eternizar, se não nos detemos em mais nada? Como perceber o que realmente importa, nessa vida, se o gozo e o prazer precisam acontecer todos os dias, e a tatuagem da moda é carpe diem ( aproveite o dia)? Na velocidade do pensamento e do agir, o que é importante se perde.

Por essa razão, amores sinceros são tão raros, amizades verdadeiras quase não existem, relações despidas de utilidade e baseadas no sentimento puro e cristalino estão fora de moda. O critério moderno é a utilidade: no que essa coisa, essa situação ou essa pessoa podem me ser úteis?

Eu vivi uma grande crise de identidade no final de 2019. Nem vou colocar a culpa na pandemia, porque esta aconteceu antes… eu vivi uma tragédia pessoal e familiar, que me fez repensar profundamente meus valores e perceber que estava desperdiçando a minha vida, com coisas, pessoas e atitudes que não mereciam durar para sempre.

“Aquele que pergunta ‘por que acreditar no que é verdadeiro’ ou ‘por que desejar o que é bom’, foi incapaz de compreender a natureza do raciocínio. Justificamos crenças e desejos ancorando nossa razão no verdadeiro e no bom.“

Roger Scruton (1944 – 2020)

A partir desse ponto de ruptura, eu passei a repensar profundamente toda a minha trajetória, e a buscar resgatar o bom, o belo e o verdadeiro,  que haviam se perdido pelo meu caminho. Não vou poder dizer que foi fácil… houve muitas consequências… afinal, perceber-se inserido em uma vida destituída de um sentido, um propósito maior, e sentir-se envergonhado  das próprias escolhas, exige uma mudança drástica!

Começar a pensar, como o texto do início diz, nas coisas que merecem durar para sempre, e nestas manter o foco, faz com que você precise despir-se, primeiro, da vaidade, calce as sandálias da humildade, e se analise sem pena ou sem medo.

A seguir, você começará a precisar de mais tempo consigo mesmo, menos barulho, mais silêncio, para olhar pra dentro, fazer uma autoanálise, sentir a dor das suas constatações, chorar sozinho, fazer promessas e tomar resoluções. E então começará a faxina… que é a pior parte, a mais pesada.

Relações por interesse ou utilitárias precisam descartadas. O lixo emocional tem que ser eliminado. Tudo passará pelo crivo: é de verdade? É bom? Merece perdurar ? Como é duro constatar que a maioria das nossas relações orbita em torno de interesse… e que nós mesmos alimentamos isso, muitas das vezes… será preciso ser verdadeiro. Coerente. Falar uma coisa e fazer outra não vale. Ser fofoqueiro e invejoso também não. Para atrair e pessoas boas, amizades valorosas e desenvolver virtudes, você precisará, acima de tudo, exercitar, o tempo todo, um comportamento virtuoso. 

Deixar para trás todo o lixo que adotamos, como comportamento, pensamentos e desejos, em nossas vidas, é extremamente difícil. O hedonismo está tão em voga porque não dá trabalho. Desejar bens e prazeres imediatos é muito mais simples. O que é mais complexo, afinal? Ser bom, ganhar um lugar no céu, perdoar verdadeiramente alguém, conquistar um amor sincero e desinteressado, ou sair por ai fofocando, expor-se nas redes, ter relações fugazes, ostentar?

Leo Haas Imagem número 10. Tamanho pequeno com cantos esfumaçados.Ser virtuoso é extremamente difícil e sobretudo complicado, no mundo em que vivemos. Aviso logo que há bastante sofrimento envolvido nessa busca. Muitas lágrimas serão derramadas. Muitas decepções acontecerão. Mas a outra opção, embora pareça a mais fácil, é muito pior, a longo prazo: viver sem um propósito, não deixar um legado para aqueles que você preza, ser exemplo para seus filhos, não ter amigos verdadeiros. Não poder sonhar com o céu. Não ter amor.

Porque o maior dos presentes que a faxina e a verdadeira mudança íntima podem trazer, para nossas vidas, é o amor. Ele é a chave, para que possamos abrir todas essas portas. Sem amor, não teremos como buscar a verdade, a bondade e a beleza. O amor está no centro de tudo. E, infelizmente, nos acostumamos a viver sem ele.

Depois de uma longa trajetória, em muitos aspectos desperdiçada, consegui, da história da minha vida, extrair o que merecia perdurar, e abrir espaço, removendo tudo que não me servia mais, para que o novo chegasse, mudando o que precisava ser modificado.

E descobri que o que dá sentido a todo o resto é o amor. Pelos filhos. Pelos amigos. Pela família. O amor romântico que une duas pessoas. O amor pela profissão. O amor que advém da caridade. O amor por Deus. A vida só vale a pena se você der e receber amor. O Amor é que merce durar para sempre.

Desejo a cada um de vocês uma vida repleta desse sentimento que tudo transforma.


Escrito por Érika Figueiredo.
A autora é Promotora de Justiça junto ao MP/RJ.

Publicado originalmente pelo portal Tribuna Diária, em 8 de maio de 2023.


Nota da editoria:

A imagem da capa foi extraída de um vídeo que expõe em câmera lenta uma bolha congelando (para visualizá-lo, clique aqui). É análoga ao artigo, afinal, certas coisas só somos capazes desfrutá-las se, obviamente, também formos capazes de percebê-las, e frequentemente só iremos notá-las se desaceleramos nossos ritmos.


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