Ciência e ideologia

Obra: "An Alchemist's Laboratory" (1570), por Johannes Stradanus (1523 -1605)

Tão frequentemente o intelectual é um imbecil que o deveríamos sempre
tomar como tal, até que nos tenha provado o contrário.
George Bernanos (1888 – 1948)



Não é curioso que a nossa época, em que este novo bezerro de ouro chamado “ciência” é adorado como nunca antes, seja também o período em que esta pareça menos capaz de nos informar o mínimo que seja sobre a realidade? A tal ciência da qual se gabam professores universitários semianalfabetos, médicos vendidos ao sistema e representantes da mídia velha e falida não é mais aquela que perscruta e descobre coisas novas sobre o mundo, mas a que camufla interesses pessoais e projetos de poder, uma vez que renegou a vocação da investigação racional para fazer-se veículo de implementação prática de uma ação política. É a mais perfeita vestidura da velha máxima norteadora da antifilosofia de Karl Marx: a de que já não mais se deve contemplar o mundo, mas transformá-lo. Do subjetivismo cartesiano às revoluções culturais, da negação da possibilidade de qualquer conhecimento objetivo ao emprego político de absolutamente todas as esferas da vida humana, a quase totalidade do discurso científico moderno é, na melhor das hipóteses, autocontraditório; na pior, não científico, mas ideológico.

Acontece que o discurso ideológico, diferentemente do filosófico e científico autênticos, não deve nada à coerência lógica: é duplo em sua própria essência, valendo-se de sua inconsistência para alcançar seus objetivos práticos. Mergulhar uma população em rios de ambiguidades e contradições escancaradas, não disfarçadas, é um caminho rápido para esquizofrenizá-la.

Mas o aparelhamento da ciência como instrumento político-ideológico não seria possível sem um elemento fundamental: a crença em sua onipotência.

Cérebro de madeira e ferro (tamanho pequeno)Todo conhecimento científico resulta de uma prévia delimitação de certo campo e certo conjunto específico de fenômenos que se pretende observar, deixando-se necessária e intencionalmente à parte todo o restante, razão pela qual toda ciência está sempre se referindo a construções hipotéticas e provisórias, e nunca aos princípios primeiros do que quer que seja.

Sendo assim, seria de se pensar que no tempo da devoção religiosa à ciência, as pessoas se encontrassem mais conscientes dessa parcela de desconhecido, de não sabido, de não visto. Mas principalmente desde a Renascença, o discurso científico foi sendo sistematicamente subvertido e elevado a um nível de confiabilidade que, por sua própria estrutura, não lhe compete. Não se trata de “negar” a ciência ou ser-lhe antipático, mas, ao contrário, de não exigir dela aquilo que não pode dar, malgrado a voracidade dos fetiches modernos a este respeito.1

A famosa afirmação socrática sobre saber que não sabe é, com frequência, popular e toscamente interpretada como uma simples afetação de humildade, uma espécie de “rouba mas faz” filosófico. Porém, o que Sócrates está enfatizando, entre outras coisas, é justamente esse coeficiente de desconhecido, essa moldura de ignorância que, quando percebida, dá a forma de toda inteligência verdadeiramente viva. Quando a ciência é alçada à dimensão da infalibilidade, ou, pior ainda, como diria também Sócrates, da “infalibilidade consensual”, produzida milagrosamente pela simples imposição de uma maioria de votos — logo eles, que tanto lutam pela voz das minorias! —, o mundo real desaparece das discussões públicas e é relegado ao fundo dos bolsos de Darwins, Sagans e Hawkings, a nós restando apenas a alternativa de discutir historinhas de ficção científica sem pé nem cabeça, que não encontrariam lugar na mais pobre das comédias gregas, e fraudes globais travestidas de calamidades sanitárias, que não seriam sequer sonhadas nem mesmo pelos mais hediondos e desprezíveis tiranos da Antiguidade.


Por Daniel Marcondes


Nota:

  1. A ciência move-se — e tudo o que afirma, só pode fazê-lo aí — no campo da probabilidade, e não no da certeza. Subir

Notas da editoria:

Imagem da capa: “An Alchemist’s Laboratory” (1570), por Johannes Stradanus (1523 -1605).


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