Com que “causa” eu vou?

Obra: "Power of Prayer", de David Mueller

Ouso dizer que nada no mundo contribui tão efetivamente para a sobrevivência,
mesmo nas piores condições, como saber que a vida da gente tem um sentido.
 Viktor Emil Frankl (1905 – 1997)



Tem sido cada vez mais intensa a proliferação de palavras novas para nominar ideias, bandeiras, movimentos…

Por que as pessoas agarram, tão facilmente e com tanta força, bandeiras e rótulos que surgem a todo momento?

Minha hipótese é que a essência religiosa, mesmo sufocada, não pode ser eliminada. Somos seres que adoram. Temos profunda necessidade de culto, veneração e entrega. Se não reconhecemos uma divindade que julgamos digna de nossa adoração, acabamos por venerar qualquer ideia, ainda que seja meramente um rótulo que nos identifique como membros do “clube tal”, militantes da “causa X”.

No final das contas, sempre damos nossas vidas àquilo que elegemos como deus – ofertamos tempo, afetos e somos transformados pela relação que estabelecemos com a “divindade” em questão e demais seguidores. A militância é sempre religiosa, ainda que se milite pelo fim da religião. É assim que o fundamentalismo pode ser visto por toda a parte, inclusive por trás das placas ateístas.

Como sobreviventes de um naufrágio, todos estão agarrando qualquer destroço do navio, na esperança de sobreviver – no caso, dar sentido à existência. Cada causa que se agarra para militar é um pretexto para o sobrevivente dizer “encontrei sentido” e convencer a si mesmo da validade do “achado”, mesmo quando o que se diz é “não há sentido”.

É a miséria da existência humana, enquanto o Autor da vida não sopra sobre nós seu fôlego capaz de despertar para o sentido que é Ele…

Recorte da obra: "Última Ceia". Trata-se de um afresco da artista renascentista italiana Andrea del Castagno (1423 - 1457), localizada no refeitório do convento de Sant'Apollonia, agora o Museo di Cenacolo di Sant'Apollonia. A obra foi criada entre 1445 e 1450.A menos que Ele nos salve, morreremos todos em nosso naufrágio, não importa quão alto gritemos que encontramos o “nosso” sentido. Os gritos intensos, de militantes enraivecidos, por mais que tentem disfarçar, não podem abafar o desespero de estar perdido em alto mar – perdido na vida…

Afinal, quem é que pode, depois de refletir sobre o assunto, suportar o peso de dar sentido à existência da qual não é autor e nem tem qualquer controle?

O “nosso” sentido não serve por uma razão muito óbvia: não inventamos e não pertencemos a nós mesmos. Ou alguém, em sã consciência, acha que é razoável levantar cartazes diante do dono do Universo reivindicando posse de si mesmo?

Crianças brincam de serem adultas e um dia tornam-se adultas de fato. Mas quando adultos brincam de ser Deus, a brincadeira não funciona como ensaio e sim como delírio. Passam a estabelecer uma relação fantasiosa com o mundo real a ponto de não mais suportá-lo. Não são raras as vezes em que o suicídio é escolhido como caminho nessa última e desesperada tentativa de ocupar o lugar de Deus. É como se a palavra final fosse: “Se a vida não pode ser do meu jeito, me recuso a aceitá-la e encerro-a aqui. Ou é do meu jeito ou não será de jeito nenhum!”.

O suicida acredita que a morte é a porta de saída. Mas quem disse que é?


Escrito por Noeme Rodrigues de Souza Campos.
Publicado originalmente no website da Editora Ultimato, em 9 de setembro de 2020.


Nota da editoria:

Imagem de capa: “Power of Prayer”, do artista David Mueller.


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Mariza

Muito bom

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