Fogo-fátuo

Obra "Moisés diante da sarça ardente" (c. 1613 - 1614), por Domenico Fetti (1589 - ?).

Todas as coisas o fogo, sobrevindo, separará e empolgará.
Heráclito de Éfeso



“Mais do que o incêndio é necessário apagar a ὕϐρις” 1, teria escrito Heráclito, entre os séculos VI e V a.C., em sua obra perdida Sobre a natureza, da qual temos notícia apenas através de fragmentos referidos por outros autores.

hýbris, termo geralmente traduzido por “desmedida”, era como os antigos gregos denominavam o excesso, o exagero, o descomedimento em relação às paixões e ao amor próprio, sendo portanto identificada, também, com certos tipos de violência praticada contra o próximo (diretamente ou através de um prejuízo à pólis) e o cultivo da soberba e da altivez orgulhosa. Do outro lado desse horizonte, como que em contraposição, estava a σωφροσύνη (sophrosyne), relativa à moderação, prudência e temperança, tão exaltada por Sócrates e outros como condição fundamental da vida virtuosa. Ainda que anteriormente à Revelação de Nosso Senhor, os gregos (nos patamares mais elevados que sua filosofia e cultura puderam alcançar) já antecipavam, ao seu modo e dentro de suas possibilidades, o que viria a ser o eixo da conduta cristã neste mundo, ensinada pelo próprio Cristo e transmitida, já desde os primeiros discípulos, para todos os povos, do que nos dão testemunhos exemplares as epístolas de São Paulo e as narrações dos Atos dos Apóstolos.

O próprio São Paulo — que pregou em Éfeso, terra de Heráclito — falará, em suas exortações, de um tipo de fogo não a ser apagado, mas com o qual inflamar o mundo: o da caridade. Esta opõe-se também inteiramente à hýbris, sobretudo porque sua raiz é o sacrifício e a doação de si mesmo — “não há maior amor do que dar a própria vida pelos seus amigos” (Jo 15, 13), diz Nosso Senhor, pouco antes de adentrar o Horto das Oliveiras para começar a realizar, na carne e no espírito, suas santas palavras —, enquanto o fundamento da hýbris, por outro lado, é o egoísmo, a autossatisfação e o deleite próprio. Uma tem origem no fogo que Nosso Senhor veio trazer à terra (Lc 12, 49) e no Espírito Santo, que desceu “como línguas de fogo” (At 2, 3) em Pentecostes; a outra é aparentada ao fogo da geena, ao “fogo inextinguível, onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga” (Mc 9, 43-44).

A caridade, porém, não pode ser tomada como uma simples contrapartida da hýbris, em sentido direto, mas como esse fogo maior e mais intenso no interior do qual esta se consome e transforma. Não se trata de uma queda de braço entre duas forças meramente opostas, mas de potência igual ou semelhante, menos ainda de uma espécie de complementaridade essencial entre elas, ao estilo do Yin e do Yang. A hýbris não está para a caridade como um boxeador está para o seu oponente, e sim como uma gota de veneno está para um rio caudaloso sobre o qual fosse destilada, podendo apenas subsumir-se nele e sendo prontamente abarcada, absorvida e purificada por algo que lhe é imensamente superior não apenas quantitativa, mas também qualitativa e substancialmente. O problema é que uma única gota de veneno afeta muito mais os nossos sentidos do que torrentes inteiras da mais doce e cristalina das águas, assim como o fruto proibido um dia destacou-se contra um fundo interminável de delícias, no Éden.

Assim, o mundo hoje encontra-se engolfado não pelo ardor suave da caridade, mas pelo incêndio dos excessos, e a maioria das vítimas desse incêndio acostumou-se a tal ponto à dor das chamas que já não sabe mais alegrar-se no frescor e no alívio que advêm de extingui-las, nem deseja fazê-lo, jactando-se do negrume de uma vida espiritual e intelectual completamente torrada em cinzas, e vociferando raivosamente contra quem procure impedi-la de atear novas labaredas sobre si mesma.

Obra: "Saturno devorando seu filho" (1636), de Peter Paul Rubens (1577 - 1640). Tamanho Pequeno.Disse São Basílio Magno, certa vez, que “não podendo tornar o inferno atraente, o demônio torna atraente o caminho que leva até lá”. Ora, tão extremado é o nível de loucura da nossa época que a ela já não mais se aplica a frase de Basílio. Não é mais necessário embrulhar a falsidade numa embalagem de verdade, não é mais preciso adornar o mal com umas poucas pérolas de boa aparência — estão todos buscando, realizando e ostentando o mal pelo mal, o falso pelo falso, o contraditório pelo contraditório, e quanto mais explícita e menos disfarçadamente, melhor. Quantos neurônios não gastaram os ideólogos de outrora no esforço de envernizar, com alguma camada artificial de respeitabilidade moral e científica, as teorias mais pérfidas e idiotas? Miseráveis! Foi-se o tempo. Hoje, tanto melhor recebida a proposta quanto mais flagrantemente inconciliável com seus próprios argumentos internos e com a realidade. E ainda querem alguns falar em “pós-verdade”, quando, parece-me, estamos de fato no período da pós-mentira: é ela quem se torna mais e mais obsoleta, porque desnecessária, conforme cresce mais comum e desinibida a maldade pública. O mundo, hoje, não é tanto dos propriamente ignorantes, mas dos obstinados violadores voluntários da verdade.

Quão ultrapassado já não está também Chesterton, com sua famosa afirmação de que “chegará o dia em que teremos que provar ao mundo que a grama é verde”. Este dia jaz no passado; a mais ninguém incomoda a consciência de se estar proclamando e vivendo as mais absurdas contradições: o desarranjo entre o ver e o dizer, entre o ser e o parecer, é o lamaçal mesmo em que chafurdam, jubilosos, os mentores e propagadores da suína mentalidade contemporânea — não apenas por ignorância, pela qual merecem nossa compaixão, mas também por deliberada iniciativa, pela qual merecem nosso combate.

A busca dos gregos pela sophrosyne desempenhou um papel crucial no saneamento de sua cultura, de modo geral, e nas alturas alcançadas por sua produção filosófica, da mesma forma que o mundo cristão, agora sob a luz do Verbo “que ilumina todo o homem que vem a este mundo” (Jo 1, 9) e esforçando-se para trilhar os ensinamentos de Nosso Senhor, sob o guiamento da caridade fraterna e tendo na santidade uma meta real de vida, viu desenvolver-se até ao ápice os edifícios da filosofia e da teologia. Isso porque nenhuma época, até o advento da Modernidade, havia sido pueril o suficiente para tomar como norma e máxima geral a sugestão de uma separação formal entre espírito e inteligência, entre a conquista das virtudes e a progressão do conhecimento. Não será possível, em nossa sociedade, qualquer recuperação de ordem cultural, científica, religiosa ou o que quer que seja, que não comece por jogar na lata do lixo essa maldita mentalidade, sobretudo cartesiana, que, não entendendo a diferença entre distinção e separação (tão cristalina entre os gregos, de modo especial em Aristóteles), cindiu a experiência humana entre ação e pensamento, entre diligência moral e atividade intelectual. 2 Dessa divisão, a busca sistemática das virtudes foi sendo mais e mais relegada a uma espécie de capricho, restrita, quando muito, aos vocacionados religiosos e aspirantes a tal, mas completamente desnecessária — digamos opcional — à nova casta dos filósofos e cientistas modernos, os quais, graças a uma concepção de conhecimento cada vez mais naturalista (ou idealista) e menos autenticamente metafísica, viram-se desobrigados de enxergar qualquer relação entre a investigação racional e o cuidado da alma, do ponto de vista propriamente moral, como se este último não implicasse, entre muitas outras coisas, o esforço de aceitar, adequar-se e compreender, tanto quanto possível, a realidade tal como é, 3 mais óbvia condição básica de qualquer pesquisa. É fácil agora perceber por que a hýbris sempre foi identificada, entre os gregos, com uma certa imaturidade do espírito, uma espécie de infantilismo existencial, o que significava também uma incapacitação do entendimento e do uso da razão, e ver como também São Paulo, logo após sua exaltação da caridade 4, dirá: “Quando eu era menino, falava como menino, pensava como menino, discorria como menino. Mas, quando me tornei homem feito, dei de mão às coisas que eram de menino” (1Cor 13, 11) — e por acaso é possível qualquer conversão espiritual real sem conversão intelectual e vice-versa?

Heráclito, se caminhasse hoje conosco, diria, com São Paulo: “Mais do que apagar a hýbris, é necessário consumi-la na caritas”. É, de fato, o único fogo que pode fazer frente àquele com o qual as revoluções têm incendiado o mundo. Todo fogo, porém, inicia-se nas primeiras fagulhas; este também não virá já pronto, e não virá das coletividades, mas do solitário esforço pessoal de cada um, esforço este cuja intransferibilidade inerente e cuja humildade necessária estão brilhantemente expostas, uma vez mais, nas inspiradas palavras de São Paulo, quando diz: “Ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e tivesse toda a fé, até ao ponto de transportar montanhas, se não tivesse caridade, não seria nada” (1Cor 13, 2).


Por Daniel Marcondes
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Nota:


  1. Fragmento XLIII (Diels, H. Kranz, W., 1951), citado por Diógenes Laércio em sua obra Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Cf. Heráclito: fragmentos contextualizados. Tradução de Alexandre Costa. São Paulo: Odysseus Editora, 2012, p. 67. Subir
  2. Cf. meu artigo O cristianismo como ideia (8 de novembro de 2022). Subir
  3. A este respeito escrevi, em outra ocasião, o seguinte: “As leis de Deus só deixarão de nos parecer um fardo insuportável quando as tomarmos não como meras restrições comportamentais, mas como guias para a nossa adequação à realidade. Não há um só Mandamento que, se quebrado, não implique necessariamente uma falsificação da nossa posição em relação à ordem do ser. A insurreição de Lúcifer contra Deus é mais propriamente uma insurreição contra essa ordem; o que está no cerne de sua sedutora falsa promessa na tentação do pecado original (“sereis como deuses”) é o desejo por excelência de subversão da estrutura da realidade. Ora, as leis morais reveladas são os caminhos pelos quais podemos nos ordenar e harmonizar, a partir das próprias atitudes, no todo cosmo-ontológico, e, portanto, um antídoto precisamente contra esse tipo de desafinação quanto à disposição do real” (20 de julho de 2022). Cf. também meu artigo E subirei ao altar de Deus (24 de janeiro de 2022). Subir
  4. Não é necessário dizer que a concepção de caridade, nos dias atuais, encontra-se brutalmente vilipendiada e distorcida, graças também aos intermináveis esforços das falanges do cristianismo modernista e às infiltrações marxistas na teologia e na Igreja. De uma profunda, ampla e especialíssima manifestação amorosa de origem divina, tal como descrita por São Paulo em sua primeira epístola aos Coríntios (capítulo 13), em uma das mais belas páginas das Sagradas Escrituras, a caridade foi criminosamente rebaixada ao mais rasteiro assistencialismo social, ao mais emasculado e frágil servilismo afetado. Subir

Nota da editoria:

Imagem de capa: Moisés diante da sarça ardente (c. 1613 – 1614), por Domenico Fetti (1589 – ?).


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