Há uma epidemia pior que a de dengue no Brasil: a epidemia do “por conta”

Cale-se (cartoon com personagem cobrindo a boca, imagem com tons de azul e vermelho).

Tudo se rende ao sucesso, até a gramática.”,
Victor Hugo (1802 – 1885).



Por conta de que você começou a ler este artigo, se, já logo no início, na expressão que abre o texto, é empregado um dos mais irritantes e inescrupulosos vícios do “novo” idioma, o “por conta de”? Eu pararia de imediato, sem ao menos terminar de ler a primeira linha. Faria isso até com certo orgulho, desprovido de qualquer dor na consciência. Um artigo que comece com “por conta de”, no lugar de “por causa” ou equivalente, ou mesmo que use tal expressão no decorrer de seu corpo, não é digno de respeito. Nem de leitura.

Não se trata de uma questão de puritanismo idiomático. A língua portuguesa, seria ingenuidade negar (assim como qualquer outro idioma), funciona como organismos vivos: ela é dinâmica, complexa e submissa a um metamorfismo que só se cessará quando não houver mais nenhuma boca vivente neste planeta. Tal premissa, no entanto, não pode ser usada, em hipótese alguma, para cometer atrocidades que, posteriormente, são empurradas goela abaixo da multidão falante. Mas com o tal do “por conta” é exatamente isso o que está acontecendo.

Feito surto de dengue em país tropical, o uso da expressão “por conta de”, no lugar das incontestáveis “por causa de”, “devido a” e variantes tomou proporções inimagináveis. O problema é que tal uso, além de entrar para o rol das expressões usadas por gente de pouca escolaridade que quer causar boa impressão intelectual, é vaga de sentido e, quando não, tão cheia dele que pode entrar para o balaio das ambiguidades.

É o que aconteceu recentemente numa reportagem de um jornal da TV aberta. Diretamente do Rio de Janeiro, a jornalista foi dar a informação de que o número de turistas brasileiros e estrangeiros que se dirigem à Cidade Maravilhosa tem crescido ano a ano, e que o principal motivo para isso era a estátua do Cristo Redentor, que passou a despertar mais curiosidade depois de ser eleita uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno. A mocinha mandou ver: “a visita ao Rio também inclui as belas praias, os restaurantes e vida noturna, mas na verdade é tudo mesmo por conta do Cristo Redentor”.

Não é difícil perceber que uma viagem feita “por conta” do Cristo Redentor é aquela que é bancada, custeada pelo Todo-Poderoso. Bem diferente de uma viagem cujo propósito é a visita ao Cristo Redentor, ou seja, por causa do monumento. Da mesma forma, se um grupo de amigos se dirige ao bar e um deles anuncia “hoje é por minha conta”, ele está querendo dizer que vai arcar com as despesas, não que estão todos ali por causa dele. São coisas bem distintas.

Fenômeno linguístico parecido já ocorreu com expressões como “a nível de”, hoje extinta, mas outrora amplamente empregada com a mesma intenção de demonstrar boa articulação intelectual. Ouvia-se, a torto e a direito, nas rádios, nas bancadas de jornais, nas ruas e até no ambiente acadêmico uma enxurrada devastadora de “a nível de”. “A nível de Brasil a inflação registrou ligeira alta”, “a nível de futebol o Brasil ainda é o melhor do mundo” (era). “Esse assunto só pode ser resolvido a nível de diretoria”. Traduzindo para o português: “A inflação no Brasil registrou ligeira alta”; “No futebol, o Brasil ainda é o melhor do mundo” (era); “esse assunto só pode ser resolvido com a diretoria (ou na)”.

Voltando ao “por conta de”, a chata e já cansativa expressão começa a dar sinais de um ligeiro enfraquecimento, como é de se esperar de invencionices pouco amparadas pelo alicerce da língua. E talvez isso aconteça por algo que, à primeira vista, possa parecer uma contradição: como esses usos da língua surgem exatamente com o intuito de demonstrar alguma erudição, quando se espalham amplamente e ganham multidões, o seu usuário já não vê  exclusividade na própria fala. O que para ele antes era tido como superioridade intelectual, passa a ser concebido como língua do povo. E então ele parte para outra, na eternar e angustiante tarefa de se mostrar um pouco mais inteligente, quando seria muito mais lícito e fácil (e inteligente também, não é isso o que se pretende? ) estudar um pouco. Mas não, ele não se dará a esse trabalho. Afinal, já anda circulando por aí outra modinha irritante, que ele vai “super” adorar. E estropiar, desta vez, com o uso de um prefixo que sempre foi muito bem cuidado (e utilizado) desde os renascentistas.


Escrito por Fabio Rabello.
Publicado originalmente pelo website Culturateca, em 13 de maio de 2015.
(A Culturateca é a versão antiga deste website)


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