O precipício

Obra: "On the Cliffs" (1913), por Laura Knight (1877 - 1970).

Se você está atravessando o inferno, não pare.
Citação comumente atribuída a Winston Churchill, no entanto não há fontes que confirmem a autoria.



Vou contar para vocês, hoje, a fábula da vaca no precipício. Gosto muito da estória, que nos sinaliza o quanto a zona de conforto pode nos ser prejudicial, adiando uma tomada de decisões, as quais podem mudar nossas vidas. Em determinados momentos, precipitar-se, que significa lançar-se de ponta cabeça, colocando-se em uma situação de perigo iminente, pode ser o movimento que faltava, para uma transformação total da realidade em que se está inserido.

Vamos lá, então: um monge caminhava com seu discípulo, de uma cidade para a outra, quando avistou uma pequena fazenda, muito velha e mal cuidada, onde decidiram parar, a fim de pedir um pouco de água e comida, para prosseguirem viagem.

Foram recebidos por uma família muito pobre, que logo apressou-se em fornecer-lhes um pouco de leite, dizendo que era tudo que tinham. Explicaram ao monge que toda sua subsistência provinha de uma vaquinha, que fornecia-lhes o leite, com o qual fabricavam os laticínios, para consumo próprio e para troca, por outras mercadorias.

O discípulo, sentindo-se muito penalizado, com a alarmante situação daquelas pessoas, perguntou ao mestre o que poderiam fazer, para ajudá-los. O monge, então, ordenou-lhe que voltasse ao local e atirasse a vaca de um precipício.

O ajudante ainda tentou argumentar, mas o mestre mostrou-se irredutível. Assim, lá se foi o jovem, lançar a vaca no abismo. Tempos depois, ainda sentindo-se culpado por aquele ato, o discípulo empreendeu uma viagem àquela cidadezinha, para oferecer ajuda à família e pedir-lhes perdão pelo que fizera.

Qual não foi a sua surpresa quando, ao chegar onde se situava a fazenda, encontrou uma próspera propriedade, repleta de árvores frondosas, com uma casa-sede novinha em folha, vários animais no pasto e cheiro de comida boa sendo preparada.

Dirigindo-se ao caseiro, com o coração apertado pela culpa, perguntou-lhe qual havia sido o destino daqueles que, anteriormente, habitavam o local. O trabalhador respondeu-lhe, então, que a casa continuava sendo propriedade da mesma família, que permanecia residindo ali, e se o jovem gostaria de conversar com seu patrão.

Ao ser conduzido à presença do fazendeiro, o discípulo, embasbacado, perguntou-lhe o que havia acontecido, para que a prosperidade chegasse, de forma tão rápida, para aquelas pessoas.

O homem explicou-lhe: “Como você sabe, aquela vaquinha que tínhamos representava toda nossa fonte de renda e subsistência. Logo após a saída de vocês daqui, a vaca caiu de um precipício, e nós ficamos sem ter o que comer ou trocar, por algum tempo.

Leo Haas Imagem número 10. Tamanho pequeno com cantos esfumaçados.A partir desse momento, todos tivemos que ser criativos, desenvolver outras habilidades e buscar meios de sobreviver. Descobrimos talentos, começamos a realizar outras tarefas, e a dedicação nos permitiu crescer e prosperar. A queda da vaca mudou as nossas vidas, o precipício nos salvou”.

Muitos de nós passamos a vida em uma zona de conforto, por receio de arriscarmos, expormo-nos ao ridículo, perdermos o que temos. Esse pensamento faz com que, a cada dia, nos tornemos mais dependentes de uma estrutura frágil e incerta, que pode romper-se a qualquer momento e deixar-nos à deriva.

O medo de ousar, de lançar-se, de tentar algo novo é paralisante, frustrante e limitador da capacidade dos seres humanos. O homem é o único ser vivo que tem capacidade de raciocínio, podendo avaliar, medir e sopesar situações, agindo não com o instinto, como os demais animais, mas com a razão.

Entretanto, o que deveria ser uma virtude bem exercida — a prudência — acaba por tornar-se um fator de acomodação, medo, construção de desculpas e de justificativas, para não realizar mudanças e promover transformações. O receio de que algo dê errado engessa o homem, que termina por não realizar o potencial, que lhe foi concedido por Deus, para seu aprimoramento pessoal e espiritual, aqui na Terra.

O importante , na vida, é caminhar. “Não parar, não precipitar, não retroceder”, o lema do professor Olavo de Carvalho, para lidar com as circunstâncias, mostra que o precipício é sempre uma possibilidade.

A etimologia da palavra precipitar é a mesma de precipício – abismo, despenhadeiro, situação de perigo iminente. O que significa que deve-se, sempre, medir consequências, mas nunca deixar de avançar, ainda que, como ensina Sun Tzu, em A Arte da Guerra, seja necessário esperar o momento certo, para tanto.

Contudo, há momentos cruciais na vida, em que o precipício se apresenta para nós. Nessas horas, ainda que o abismo pareça extremamente ameaçador, causando insegurança e medo, será preciso encontrar um meio de sair desse buraco, sacudir a poeira e recomeçar.

Nunca é tarde para os recomeços. Transformar a existência em algo maior e melhor é a missão de todos nós. Mantermo-nos acomodados é tudo o que Deus não quer da gente. Em toda jornada do herói, já diz meu querido amigo Paulo Briguet, há uma descida ao inferno. Esta se faz necessária, para que se possa repensar o caminho, as escolhas e as atitudes.

Quando saímos do abismo, a retomada nos dá a coragem e a força de que precisamos, para ousarmos e modificarmos o que precisa ser mudado. A criatividade, a determinação e a capacidade de superação de cada um, definirá o curso dos acontecimentos, em sua vida.

Nos grandes romances e mitos, está presente a capacidade de vencer os desafios, impostos pela realidade. A História está recheada de grandes nomes, que souberam reinventar-se, após uma fragorosa queda ou derrota. Isso faz parte da vida. E isso muda completamente a trajetória de uma existência.

Portanto, quando a sua vaca for para o brejo, ou cair no precipício, não se desespere: reveja suas escolhas, corrija o rumo, faça novos movimentos, acredite em Deus e nos planos que Ele tem para você. Talvez, essa queda seja o que faltava, para que do alto das convicções que você construiu, você olhe para baixo, e perceba que é preciso mudar para evoluir.

Pode acreditar. Algumas perdas são exatamente o que nos faltava, para contatarmos a nossa essência e nos decidirmos pela mudança.


Escrito por Érika Figueiredo.
A autora é Promotora de Justiça junto ao MP/RJ.

Publicado originalmente pelo portal Tribuna Diária, em 26 de junho de 2023.


Notas da editoria:

Imagem da capa: “On the Cliffs” (1913), por Laura Knight (1877 – 1970).


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