O sacerdote cientista

Obra: "Louis Pasteur" (1885), por Albert Edelfelt (1854 – 1905).

* Excerto da Obra “Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental”,
de Thomas E. Woods Jr.



É relativamente simples mostrar que a grande maioria dos cientistas, como Louis Pasteur, foi católica. No entanto, muito mais revelador é o número surpreendente de figuras da Igreja, especialmente de sacerdotes, cuja obra científica foi muito extensa e significativa. A insaciável curiosidade desses homens acerca do universo criado por Deus e a sua dedicação à pesquisa científica revelam — mais do que poderia fazê-lo uma simples discussão teórica — que o relacionamento entre a Igreja e a ciência foi de amizade mais do que de antagonismo e desconfiança.

Merecem ser mencionadas diversas figuras importantes do século XIII. Roger Bacon, um franciscano que lecionava em Oxford, foi admirado pelo seu trabalho no campo da matemática e da ótica, e é considerado um precursor do moderno método científico. Bacon escreveu sobre filosofia da ciência e enfatizou a importância da observação e dos ensaios. No seu Opus maius, observou: “Sem experimentos, nada pode ser adequadamente conhecido. Um argumento prova teoricamente, mas não dá a certeza necessária para remover toda a dúvida; nem a mente repousará na visão clara da verdade se não a encontrar pela via do experimento”. Do mesmo modo, no seu Opus tertium, adverte que “o argumento mais forte não prova nada enquanto as conclusões não forem verificadas pela experiência” 1.

Santo Alberto Magno (1200 – 1280) foi educado em Pádua e depois ingressou na ordem dominicana. Lecionou em vários mosteiros antes de assumir uma cátedra na Universidade de Paris, em 1241, onde viria a ter entre os seus alunos ilustres ninguém menos do que São Tomás de Aquino. “Perito em todos os ramos da ciência”, diz o Dictionary of Scientifc Biography, “foi um dos mais famosos precursores da ciência moderna na Idade Média”. Canonizado pelo Papa Pio XI em 1931, Papa Pio XII nomeou-o, dez anos depois, patrono de todos os que cultivam as ciências naturais 2.

Renomado naturalista, Alberto Magno registrou uma enorme quantidade de coisas sobre o mundo que o cercava. As suas obras, de uma prodigiosa vastidão, abrangiam física, lógica, metafísica, biologia, psicologia e várias outras ciências profanas. Tal como Roger Bacon, sublinhava a importância da observação direta para a aquisição do conhecimento sobre o mundo físico. Em De Mineralibus, explicou que o objetivo da ciência natural era “não simplesmente aceitar as afirmações de outros, ou seja, o que é narrado pelas pessoas, mas investigar as causas que agem por si mesmas na natureza” 3. A sua insistência na observação direta e a sua recusa em aceitar a autoridade científica da fé foram contributos essenciais para a estruturação científica da mente.

Capa da obra: "Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental", escrita por: Thomas Woods Jr. Publicada pela Quadrante Editora, sob ISBN-13 : 978-8574651255.Roberto Grosseteste (1168 – 1253), que foi chanceler de Oxford e bispo de Lincoln, a maior diocese da Inglaterra, partilhou dessa enorme gama de interesses de estudo e de conquistas que caracterizou Roger Bacon e Santo Alberto Magno. Tinha sido influenciado pela escola de Chartres, particularmente por Thierry 4. Considerado um dos homens mais cultos da Idade Média, é conhecido como o primeiro homem a deixar por escrito o conjunto completo dos passos que se devem dar para realizar uma experiência científica. Em Robert Grosseteste and the Origins of Experimental Science, A.C. Crombie sugeriu que o século XIII já possuía os rudimentos do método científico graças, em grande parte, a figuras como Grosseteste. Por isso, embora as inovações da Revolução Científica do século XVII mereçam as maiores honras, já na Idade Média era evidente a ênfase teórica na observação e na experimentação.

Mas há outros nomes no campo da ciência que, apesar de nunca terem sido tirados da obscuridade, merecem ser mencionados. O pe. Nicolau Steno (1638 – 1686), por exemplo, um luterano que se converteu ao catolicismo e veio a tornar-se sacerdote, foi quem “estabeleceu a maior parte dos princípios da geologia moderna” e chegou a ser chamado o “pai da estratigrafia” (a ciência dos estratos ou camadas da terra) 5. Nascido na Dinamarca, viveu e viajou por toda a Europa e exerceu a medicina por algum tempo na corte do grão-duque da Toscana. Gozava de excelente reputação e realizou um trabalho criativo em medicina, mas foi no estudo dos fósseis e da estratigrafia que alcançou renome científico.

O seu trabalho iniciou-se em um contexto inusitado: a dissecção da cabeça de um enorme tubarão que pesava cerca de 1270 quilos e foi encontrado por um barco de pesca francês em 1666, Steno, que era conhecido pela sua grande perícia como dissecador, foi chamado para realizar a dissecção.

Para os nossos propósitos, é suficiente concentrarmo-nos no fascínio que despertaram em Steno os dentes do tubarão. Apresentavam uma estranha semelhança com as assim chamadas línguas de pedra, ou glossopetrae, cujas origens estavam envolvidas em mistério desde os tempos antigos: dizia-se que essas pedras, que os malteses extraíam da terra, possuíam poderes curativos. Tinham-se proposto incontáveis teorias para explicá-las, e no século XVI Guillaume Rondelet sugeriu que podia tratar-se de dentes de tubarão, mas poucos se impressionaram com a ideia; agora, Steno tinha a oportunidade de comparar os dois objetos e estabelecer claramente a semelhança.

Foi um momento significativo na história da ciência, porque apontava para um lema muito maior e mais importante que os dentes de tubarão e as pedras misteriosas: a presença de conchas e fósseis marinhos, engastados em rochas muito distantes do mar. A questão das glossopetrae — agora quase com certeza dentes de tubarão — suscitou o problema mais amplo da origem dos fósseis em geral e de como tinham chegado ao estado em que se encontravam. Por que essas coisas eram encontradas dentro de rochas? Ter-se-iam formado por geração espontânea? Essa era uma das numerosas explicações que se tinham proposto no passado.

Steno considerou cientificamente duvidosas essa e outras explicações, além de ofensivas à sua ideia de Deus, que não agiria de um modo tão aleatório e despropositado. Lançou-se então a estudar a questão, dedicando os dois anos seguintes a escrever e compilar aquilo que viria a ser a sua influente obra De solido intra solidum naturaliter contento dissertationis prodromus (“Discurso preliminar a uma dissertação sobre um corpo sólido naturalmente contido dentro de outro sólido”).

Não era uma tarefa fácil, pois exigia desbravar um território desconhecido. Não existia uma ciência da geologia à qual Steno pudesse recorrer em busca de uma metodologia ou de princípios fundamentais. No entanto, foi adiante com ousadia e lançou uma ideia nova e revolucionária: tinha a certeza de que as rochas, os fósseis e os estratos geológicos contavam uma história sobre a história da terra e os estudos geológicos podiam iluminar essa história 6. “Steno – escreveu o seu biógrafo mais recente – foi o primeiro a afirmar que a história do mundo podia ser reconstituída a partir das rochas, e assumiu pessoalmente a tarefa de deslindála” 7.

“Em última análise, o feito de Steno no De solido não consistiu apenas em propor uma nova e correta teoria sobre os fósseis. Como ele próprio disse, houve escritores que, mais de mil anos antes, tinham dito essencialmente a mesma coisa. Tampouco ocorria que ele estivesse simplesmente apresentando uma nova e correta interpretação dos estratos de rocha. O que fez foi traçar um plano para uma abordagem cientifica totalmente nova da natureza, ampliando as fronteiras do tempo. Como ele próprio escreveu, «da conclusão definida que tiramos do que é observável podemos extrair conclusões sobre o que é imperceptível». Do mundo atual podemos deduzir mundos que já desapareceram” 8.

Com o passar dos anos, o pe. Steno viria a ser tomado como modelo de santidade e de sabedoria. Em 1722, o seu sobrinho-neto Jacob Winslow escreveu a sua biografia, que apareceu em um livro chamado Vidas de santos para cada dia do ano, na secção dedicada a prováveis futuros santos. Winslow, um convertido do luteranismo ao catolicismo, atribuiu conversão à intercessão do pe. Steno. Em 1938, um grupo de admiradores dinamarqueses procurou o papa Pio XI para pedir-lhe que o declarasse santo. Cinquenta anos mais tarde, o papa João Paulo II beatificou-o, louvando a sua santidade e a sua ciência.


Excerto da Obra Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental,
escrita por Thomas E. Woods Jr.

Publicada pela Quadrante Editora,
sob ISBN 978-8574651255.


Notas:

  1. James J. Walsh, The Popes and Science, págs. 292-293. Subir
  2. William A. Wallace. OP, “Albertus Magnus, Saint”, em DSB, pág. 99. Subir
  3. James J. Walsh, The Popes and Science, pág. 297. Subir
  4. Richard C. Dales, “The De-Animation of the Heavens in the Middle Ages”, pág. 540. Subir
  5. Willian B. Ashworth Jr., “Catholicism and Early Modern Science”, em David C. Lindberg e Rolnald L. Numbers, eds., God and Nature: Historical Essays on the Encounter Between Christianity and Science, pág. 146. Subir
  6. Das muitas ideias encontradas nos seus escritos, três costumam ser chamadas “os princípios de Steno” é dele o primeiro livro de que lemos notícia acerca da sobreposição, uma das chaves principais da estratigrafia (David R. Oldroyd, Thinking About the Earth: A History of Ideas in Geology, Harvard University Press, Cambridge, 1996, págs. 63-67; ver também A. Wolf, A History of Science, Technology, and Philosophy in the 16th and 17th Centuries, George Allen & Unwin, Londres, 1938, págs. 359-60.) A lei da sobreposição é o primeiro dos princípios de Steno. Estabelece que as camadas sedimentares são formadas em sequência, de tal modo que a camada mais baixa é a mais antiga, e as camadas vão decrescendo em idade até à mais recente, situada no topo. Mas, como a maioria dos estratos que encontramos foi de algum modo alterada, distorcida ou inclinada, nem sempre é fácil reconstruir a sua história geológica, a sequência da estratificação. Por esse motivo, Steno introduziu o princípio da horizontalidade original. A água — disse ele — é a fonte dos sedimentos, seja na forma de um rio, de uma tempestade ou de fenômenos similares: carrega-os e deposita-os em várias camadas sedimentares. Uma vez que os sedimentos se depositam numa bacia, a gravidade e as correntes de águas rasas tem sobre eles um efeito nivelador, de tal modo que as camadas sedimentares, como a própria água, acompanham a forma da superfície do fundo, mas se tornam horizontais na parte superior. Como descobrir a sequência sedimentar em rochas que não permaneciam na posição original? Tendo em conta que os grãos maiores e mais pesados naturalmente se depositam em primeiro lugar, seguidos pelos que vão tendo tamanhos cada vez menores, só precisamos examinar as camadas e observar onde as partículas maiores foram depositadas. Aí está a camada inferior da sequência (Alan Cutler, The Seashell on the Mountaintop, Dutton, New York, 2003, págs. 109-12). Finalmente, temos o princípio da continuidade lateral: esse princípio indica que, quando ambos os lados de um vale exibem rochas sedimentares, é porque os dois lados estavam originalmente unidos formavam camadas contínuas , e que o vale é que se deveu a um evento geológico posterior, por exemplo um processo de erosão. Steno também apontou que, se em um estrato é encontrado sal marinho ou qualquer outra coisa que pertença ao mar dentes de tubarão, por exemplo , isso revela que em algum momento o mar deve ter estado ali. Subir
  7. Alan Cutler, The Seashell on the Mountaintop, pág. 10. Subir
  8. Ibid., págs. 113-14. Subir

Nota da editoria:

Imagem da capa: “Louis Pasteur” (1885), por Albert Edelfelt (1854 – 1905).


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