Emanuelle

Obra: "Jelly Beans", por Michael Martin

A cortesia é irmã da caridade, que apaga o ódio e fomenta o amor.
São Francisco de Assis (1182 – 1226)



Há poucos dias testemunhei uma cena preocupante (para dizer o mínimo) que não sai da minha cabeça desde então — e a melhor forma de exorcizá-la é escrevendo.

Eu estava organizando alguns arquivos em um computador, e uma colega de trabalho atendia um casal. Depois de cinco minutos, enquanto a mulher experimentava uma cadeira cujo preço gira em torno de três mil reais, Emanuelle entrou na loja: uma menina de sete ou oito anos — mesma idade de minha filha —, linda e extremamente educada, vestindo roupas sujas e velhas, toda suada, com uma caixa de jujubas na mão. Ainda um pouco deslocada e fascinada com a beleza da loja de decoração, esqueceu-se por um minuto de seu objetivo e, caminhando lentamente, passou a admirar os móveis, a iluminação, os quadros… logo, porém, recobrou a consciência, provavelmente lembrando-se do motivo de ter entrado ali. Aproximou-se da cliente e disse:

— Bom dia, moça! Gostaria de comprar jujubas?

— Não tenho dinheiro, obrigada — respondeu a mulher, com frieza, depois de uma olhadela, e logo voltou a tatear os braços da cadeira.

— Sem problemas, moça! Eu aceito Pix! — retrucou Emanuelle, depois de ter ouvido essa mesma desculpa mil vezes só naquele dia.

— Eu não gosto de doces — disse a cliente, agora sem olhar nos olhos da criança.

— Sem problemas, moça! Tenha um ótimo dia — e, desta vez, ficou sem resposta.

São raras as oportunidades que alguém tem de ver um contraste tão grande, duas realidades completamente diferentes: enquanto uma realiza um sonho, a outra luta para sobreviver; de um lado, a abundância, de outro, a escassez. Mais discrepante do que a situação financeira é a destreza social: enquanto Emanuelle emanava elegância, a cliente da loja transbordava grosseria. Nem mesmo eu, que tenho mais de dez anos de experiência comercial, aceito uma rejeição com tanta sutileza. Pois a menina seguiu inabalável. Deveria ter, no máximo, um metro e vinte de altura, mas pequena, ali, era a mulher. Que ironia! Era exatamente a pessoa menos favorecida que demonstrava superioridade e saía de uma situação como essa tal qual uma verdadeira dama, com a fineza digna de uma rainha.

Depois do ocorrido, fui obrigado a ouvir essas frases imbecis que vemos estampadas em outdoors pela cidade, e outras salpicadas de ignorância popular, como: “Não dê esmola, dê oportunidade”, “esmola não resolve nada”, “o dinheiro nem vai para ela”, “a mãe deve ser viciada”. Acontece que a menina não estava pedindo absolutamente nada: ela comprou um produto honestamente, calculou a margem de lucro ideal e foi à luta. Ainda que estivesse pedindo esmola, tenho pena da alma que precisará explicar para Deus por que negou ajuda a uma criança.

É realmente impressionante a capacidade que o brasileiro tem de isentar-se completamente de sua responsabilidade diante de uma situação particular, usando toda sorte de cenários hipotéticos, como, por exemplo, na famosa desculpa “não dou dinheiro porque ele vai beber”. Não ajuda de forma alguma, sai crente de ter feito seu papel e, para fechar com chave de ouro, ainda consegue fazer com que alguém com disposição para ajudar sinta-se mal por tê-lo feito. Ora, será mesmo impossível que Emanuelle tenha uma ótima mãe? Suspeito que traquejo social como o dela não venha de uma mãe desinteressada. Ou será também impossível que elas estejam mesmo passando por um momento difícil? Lembre-se de sua própria vida há dez ou quinze anos e perceba como muito pouco — ou nada — de sua atual situação foi planejado ou mesmo resultado de esforços direcionados a um fim específico. Estamos o tempo todo à deriva no mar da vida, entregues à fortuna e ao destino, rezando para que Deus nos guie e proteja. Mal uma tempestade se encerra e já podemos avistar outra no horizonte. Quantos desencontros, injustiças, traições e decepções você já sofreu? Responda com sinceridade: quantos meses sem receber salário algum são necessários para fazê-lo ir morar na rua e ver-se obrigado a vender jujubas? Quem garante que a mãe de Emanuelle não seja também uma vítima dessa má fortuna? Por que o primeiro impulso é o de desconfiar da honestidade alheia? O que eu faço da vida é assim tão superior ao que Emanuelle faz? Uma simples formalidade contratual é capaz de revestir meu trabalho com o manto da dignidade?

Ainda existe, é claro, o problema de ser uma criança trabalhando, mas não estou sugerindo que possamos, num passe de mágica, resolver toda sua vida; em um mundo perfeito, ela não trabalharia, mas de tanto pensarmos no mundo perfeito, acabamos por esquecer o real. O que sugiro é que tentemos, de alguma forma, seja comprando a jujuba, seja demonstrando compaixão, melhorar o dia dessa criança. Quão curto não seria seu dia de trabalho, se todos ajudassem! Mas, além de trabalhar, ela ainda precisa ser forte para aguentar a indiferença e a frieza do ser humano. O que mais me incomodou em toda aquela cena foi o desprezo com que a mulher tratou a menina. Ainda acredito que se você não tem dois reais para contribuir, talvez precise repensar sua gestão financeira, mas, mesmo assim, ao menos olhe nos olhos da criança, dê um sorriso, pergunte seu nome, pergunte o que ela gosta de fazer, do que gosta de brincar, qualquer coisa! Se fosse um cachorro de rua, era bem capaz da desgraçada se ajoelhar no chão para lhe dar carinho.

Há um trecho do famoso artigo Pobreza e grossura, do filósofo Olavo de Carvalho, que me sinto obrigado a reproduzir aqui:

“O brasileiro de classe média e alta está virando uma gente estúpida que clama contra a miséria no meio da abundância porque cada um não quer usar seus recursos para aliviar a desgraça de quem está ao seu alcance, e todos ficam esperando a solução mágica que, num relance, mudará o quadro geral. Sofrem de platonismo à outrance: crêem na existência de um geral em si, dotado de substância metafísica própria, independente dos casos particulares que o compõem.”

Apenas para desfecho deste breve capítulo na vida de Emanuelle, e longe de querer me colocar como o paladino da caridade (pois bem sei que, nos quesitos de caráter e virtudes, estou mais próximo daquela mulher fria do que da garotinha), digo que comprei todas as jujubas — a caixa toda; vinte pacotes; nem sei o que fazer com tantas jujubas —, mas apenas para poder informá-los de que a menina saiu da loja realizada e com um sorriso de orelha a orelha. Quando disse que era uma ótima vendedora e que ela própria me convencera a comprar as jujubas, vocês desejariam ter visto seus doces olhinhos verdes enchendo-se de alegria! Se o dinheiro vai ajudar Emanuelle de alguma forma, eu não sei; se tenho a capacidade de resolver todos os problemas que ela enfrenta, posso garantir que não; mas o simples sorriso de uma criança deveria ser argumento suficiente para convencer alguém a ajudá-la.

Enfim, Emanuelle obteve ainda uma última vitória: será sempre lembrada neste pequeno artigo, ao menos enquanto a internet existir; já a mulher da loja — cujo nome fiz questão de omitir —, que caia no esquecimento.


Por Caio Machado


Nota da editoria:

Imagem da capa: “Jelly Beans”, por Michael Martin.




Em complemento, ouça Salomão Schvartzman (1934 – 2019) recitando artigo de de Martha Medeiros, que expõe outras características sobre os “ricos-pobres”:


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