“Da tranquilidade da alma”, capítulo 1

Obra: "Poor Folk Drinking in a Tavern" (1625 - 1630), por Adriaen Brouwer (1605 ou 1606 - 1638).


Se vives de acordo com as leis da natureza, nunca serás pobre;
se vives de acordo com as opiniões alheias, nunca serás rico.
Sêneca (5 a. C. – 65 d. C.)


Primeiro capítulo, da obra “Da tranquilidade da alma”, de Lúcio Aneu Sêneca.


Examinando a mim mesmo, ó Sêneca, aparecem alguns vícios expostos tão abertamente que poderia segurá-los com a mão, outros mais obscuros e escondidos, outros ainda que não são contínuos, mas que voltam a intervalos intermitentes, os quais afirmo serem os mais incômodos, como inimigos escondidos que atacam nas ocasiões mais oportunas, contra os quais não se pode estar tão preparado como na guerra nem tão seguro como na paz.

De fato, o estado em que me encontro (por que não te confessarei a verdade como a um médico?) é o de não estar, de boa fé, liberto daquelas coisas que eu temia e odiava, nem totalmente submetido a elas. Neste estado, não sendo o pior, é o mais lamentável e incômodo, porque não estou doente nem são.

E não é o caso tu me dizeres que todas as virtudes são tênues nos seus princípios, e que com o tempo adquirem dureza e robustez. Não ignoro também que nas coisas pelas quais se trabalha pelas aparências, digo pela dignidade e pela fama de eloquência e o que quer que venha do sufrágio alheio, com o tempo se consolidam inteiramente. E as coisas que comunicam as verdadeiras forças, tal como para agradar, se revestem de falsas aparências, esperam anos até que paulatinamente a duração lhes dê cor. Mas eu temo que o costume, que consolida as coisas, não fixe este vício mais profundamente em mim. Tanto dos males quanto dos bens, uma longa familiaridade induz ao amor.

Seja qual for esta debilidade da alma, que nem se inclina fortemente ao que é certo nem ao que é depravado, não consigo expor tudo de uma única vez, mas apenas por partes. Eu te direi o que está me acontecendo, e tu encontrarás um nome para essa doença.

Confesso que tenho um grande amor pela parcimônia: agrada-me uma cama que não seja adornada de modo exagerado, sem vestes retiradas da arca e prensadas para recuperar o brilho. Prefiro roupas que sejam caseiras e baratas e que, sem exageros, sejam conservadas e guardadas para o uso.

Agrada-me uma comida que não tenha sido preparada nem observada por muitos escravos domésticos, com muitos preparativos, nem muitos dias antes, mas que seja comum e de fácil preparo, que não tenha nada de rebuscado nem de exótico, que seja encontrada em qualquer lugar, que não seja pesada nem ao bolso nem ao corpo, que não saia por onde entrou.1

Capa da obra: "Da tranquilidade da alma", de Sêneca.Agrada-me o criado inculto e o escravo rude, a pesada prata do meu rústico pai, sem o nome do artífice, e uma mesa não tão vistosa pela variedade de cores, nem famosa na cidade pelas suas sucessões de donos elegantes, mas, que posta em uso, não desperte a volúpia de nenhum dos convidados nem lhes acenda a inveja.

Embora tais coisas me agradem, alegra-me a alma o aparato de algum pedagogo2, o qual, vestido com muito cuidado e com mais ouro do que se fosse para um desfile, é cortejado por outros também elegantes. Já a casa em que pisam é preciosa, as riquezas estão disseminadas por todos os cantos, os tetos são refulgentes, e sempre há um povo que assiste aos jantares e ao desperdício dos patrimônios. O que direi dessas águas, reluzentes até o fundo e que circundam aos próprios convidados e dos banquetes dignos desse cenário?

Vindo eu de um longo período de frugalidade, me circundou com tamanho esplendor o luxo que resplandece ao redor. Minha vista titubeia um pouco, mais facilmente reajo com a alma do que com os olhos. Eu me retiro não pior, mas mais triste entre os meus parcos bens. Não estou satisfeito, e me ocorre a dúvida de que outras coisas seriam melhores. Nenhuma dessas coisas me muda, mas todas me deixam abalado.

Resolvi seguir os comandos dos preceptores e me envolver nos assuntos públicos. Aí me entusiasmam as honras e os fasces3, não por andar vestido de púrpura e cercado de varas, mas para ser mais útil aos amigos, aos familiares, a todos os cidadãos e, de modo geral, a todos os mortais. De modo mais concreto, sigo a Zenão, a Cleanto e a Crisipo. Nenhum deles se envolveu com a política, mas nunca deixaram de enviar para lá seus discípulos.

Quando algo insólito me atinge, eu que não estou acostumado a tais impactos; quando acontece algo indigno, tal como, rotineiramente, acontece na vida, ou alguma coisa de difícil resolução; quando fatos pequenos e sem importância tomam muito tempo, volto-me para o meu retiro. Da mesma maneira como acontece com o rebanho fatigado, que rapidamente retorna para o curral, volto para casa cada vez mais apressado. Não há nada de mais relaxante do que ficar entre as paredes de nosso lar. Que ninguém me furte um único dia, já que nunca poderia me compensar tão grande perda. Neste local, a alma fica dedicada a si mesma, pode ser cultivada, nada nem nenhum juízo alheio pode afetá-la. Livre dos cuidados particulares e públicos, dedicasse à tranquilidade.

Desde que uma leitura excitante elevou a minha alma, e nobres exemplos a estimularam, compraz-me ir ao foro, dar a palavra a uns, trabalho a outros e, mesmo que não sirvam para nada, visam a uma utilidade. Dessa forma, refreio, no foro, a soberba daqueles que, em virtude de sua prosperidade, se tornam insolentes.

Baseado em meus estudos, acredito ser melhor contemplar as próprias coisas e falar movido por elas, emitindo palavras adequadas aos fatos, de modo que, para onde quer que levem, o discurso siga esta espontaneidade. Por que, então, compor obras que durem séculos? Queres fazer isso para que os pósteros não te esqueçam? Nasceste para morrer: causa menos incômodo um funeral silencioso.

Às vezes, a minha alma se eleva com a magnitude do pensamento, torna-se ávida por palavras e aspira às alturas. Assim, o discurso já não é mais meu. Esquecido dasnormas e dos critérios rigorosos, elevo-me e falo com uma boca que não é mais minha.

Não me detendo em detalhes, atento para o fato de que, em minhas preocupações, sou acompanhado por certa timidez cheia de boas intenções. Temo me inclinar paulatinamente para elas ou, o que é mais preocupante, ficar sempre pendente e que talvez isso seja mais forte do que eu havia previsto. Isso porque as coisas costumeiras nos parecem familiares e sempre são julgadas de modo benevolente.

Penso que muitos poderiam ter chegado à sabedoria se não pensassem já serem sábios, se não tivessem dissimulado para si mesmos algumas coisas e se não tivessem passado por outras tantas com os olhos fechados. Não há razão para pensares que a adulação alheia nos é mais perigosa que a nossa própria. Quem ousa dizer a verdade para si mesmo? Quem, posto entre a multidão daqueles que elogiam e lisonjeiam, não elogia a si mesmo ainda mais?

Rogo, pois, se tens algum remédio com o qual possas refrear essa flutuação, para que me consideres digno de dever a ti a minha tranquilidade.

Sei que esses movimentos da alma não são perigosos nem trazem qualquer inquietação mais tumultuosa. Lançando mão de uma imagem que expresse o que sinto, digo que não me cansa a tempestade, mas, sim, a náusea. Portanto, afasta o que quer que seja este mal e socorre ao náufrago que já avista a terra.


Primeiro capítulo, da obra “Da tranquilidade da alma”,
de Lúcio Aneu Sêneca.

Traduzido do latim por Lúcia Sá Rebello e Ellen Itanajara Neves Vranas,
Publicado pela Editora L&PM, sob ISBN 978-8525417541.


Notas:

  1. Referência ao hábito da bulimia entre os romanos. (N. T.) Subir
  2. O texto latino diz apparatus alicuis paedagogii. Paedagogium era o nome usado para a escola frequentada por escravos mais especializados. (N. T.) Subir
  3. Fasces eram varas com as quais os oficiais (litores) acompanhavam o cônsul. Era símbolo de quem podia punir. (N. T.) Subir

Nota da editoria:

Imagem da capa: “Poor Folk Drinking in a Tavern” (1625 – 1630), por Adriaen Brouwer (1605 ou 1606 – 1638).




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