“Nada é tão admirável em política quanto uma memória curta.”
John Galbraith (1908 – 2006), filósofo, economista e escritor americano
Por Gustavo Corção (1896 – 1978). O Globo, 25 de outubro de 1969.
Quais são realmente as mentalidades que se defrontam na Igreja de nossos dias, e mais especialmente no Sínodo? Já vimos que as denominações usadas no noticiário não nos parecem adequadas. Que denominações proporíamos nós em lugar daquelas?
Parece-nos mais verdadeira esta outra divisão:
De um lado estão os católicos sem adjetivos, ou então os católicos-católicos que, mal ou bem, apresentam os seguintes traços: eles crêem na Igreja, e crêem que a Igreja, no patrimônio de sua sabedoria e na riqueza de sua vida interior e de seus ensinamentos, dispõe de mais recursos para ensinar e conduzir o mundo do que toda a cultura da humanidade dispõe para conduzir-se a si mesma e para conduzir a Igreja. Sem deixar de reconhecer e de admirar os esforços dos homens, os católicos-católicos sabem que a cultura acumulada e prestigiada pela ida à Lua não tem unidade, nem tem profundidade para resolver os mais humanos e portanto os mais graves problemas do homem. O mundo, em seus registros, não sabe como é feito o homem. Possuirá mil informações preciosas a respeito das estruturas exteriores, mas não sabe de ciência certa o que convém ao homem, na vida de família, no convívio político e principalmente não sabe o que mais convém à alma humana. A Igreja sabe como o homem é, e sabe ainda mais o que Deus quer do homem.
Com esta convicção, e com esta certeza de fé, os católicos-católicos se habituaram a procurar na Igreja de todos os tempos, no depósito de sabedoria acumulada pelos apóstolos, pelos santos Padres, pelos doutores e pontífices e por todos os santos, as respostas às mais altas indagações sobre os problemas humanos. Por mais forte razão, o católico-católico, colocado em situação de influir e de contribuir para os negócios do Reino de Deus procurará na própria Casa de Deus, nos próprios registros da Igreja, e sempre à luz da Fé, as soluções para todas as dificuldades. Ninguém melhor do que a Igreja poderá conhecer as delicadezas dos problemas eclesiais, e nenhuma ciência do mundo poderá trazer mais do que uma subalterna ciência exterior e menor, que só será proveitosa na medida em que puder ser assimilada e norteada pelos critérios espirituais.
O católico-católico sabe que a Igreja deve estar atenta ao mundo, mas não como quem está atento ao mestre, e sim como o mestre que deve às vezes aprender com o aluno, para melhor conhecer suas deficiências e para melhor ensinar, ou como o médico que ausculta, não para ser curado pelo doente, mas às vezes ser por ele informado e para curá-lo.
O católico-católico que estivesse sentado no Sínodo prestaria ouvidos ao clamor de um mundo enfermo, não para tirar deste clamor a ciência e o remédio. E para os grandes problemas da Igreja, só à Igreja pedirá critérios e normas. E em todos os rumores que lhe viessem do mundo saberia sempre vigiar, bem sabendo que haverá sempre no mundo uma corrente de ira e de inimizade que quer a destruição da Igreja.
De outro lado estão os avançados, os modernistas, os progressistas ou liberais, que crêem mais no mundo do que na Igreja, e que, para o suposto bem de uma nova Igreja que julgam ainda estimar, preferem não ouvir a velha antes de ouvir os jornalistas, os economistas, e demais estudiosos da casca do mundo. Acreditam mais na Ciência, na História, no Progresso, no Mundo, do que na Igreja fundada por Jesus Cristo, vivificada por seu Espírito. Daí a espantosa facilidade com que desdenham a obra de um Pio X, recentemente canonizado, e precisamente canonizado como Papa exemplar.
O progressista, o avançado, o historicista, o liberal, acredita mais em Karl Marx do que em Santo Tomás, e vê valores mais apetecíveis em um Guevara do que em um Santo Cura d’Ars, porque toda a sua confiança está sempre posta no lado do mundo, e toda a sua desconfiança está sempre dirigida para este espantalho da história que é a Igreja de Cristo. Queixam-se dela com medidas e critérios pedidos ao mundo; e querem até salvá-la dela mesma, querem servi-la contra o que ela sempre quis, e para isto nada lhes convém mais do que os critérios da História, do Progresso, da Ciência e da Técnica. A convicção central desse personagem é a de que o homem está se saindo muito bem de todas as empresas, inclusive a de se salvar, enquanto a Igreja não fez outra coisa senão tropeçar nas próprias vestes e desacertar. Debalde lhe dirá o católico que a Igreja tem sua vitória no céu, e que Jesus Cristo Nosso Senhor deixou bem claramente dito que Seu Reino não é deste mundo. Debalde lhe dirá o católico que o mundo está condenado, e que a Igreja vive e sobrevive para colher os sobreviventes do naufrágio final.
Jamais se entenderão esses dois homens, a não ser que o católico apostate ou que o progressista ou liberal se converta. E a obra comum que apresentarem será tanto pior quanto melhor imaginarem que é.
Dois católicos podem divergir de mil modos em questões que se referem às coisas da Igreja, podendo ainda essa divergência ser aproveitada em benefício das almas. O entendimento torna-se impossível e inaproveitável o desentendimento quando o católico-católico percebe que esperam dele a renúncia de seu critério central, que é o próprio mistério da Igreja. Temos a firme convicção de que só haverá lucro real para a Igreja se em tais eventualidades, os católicos souberem repelir os critérios progressistas, cientificistas, historicistas, seculares, com a mesma energia que Jesus repeliu a secularização esboçada por Pedro: “retro Satana!“
Realmente o que está em choque na Igreja de nossos dias é o lado católico, que tira da Igreja todos os seus critérios, e o lado progressista ou liberal, que acredita mais no Século do que na Revelação. Ainda há homens na Igreja que crêem na Igreja, e crêem na absoluta superioridade da Igreja sobre o mundo que precisa dela para salvar-se; mas cremos que já são mais numerosos os homens que acreditam na absoluta superioridade do Século, e que, na melhor das hipóteses, ainda desejam recuperar a vetusta organização filantrópica, se essa veneranda recalcitrante se corrigir de suas antigas intransigências e resolver aceitar a mãozinha estendida da mundanização.
Por Gustavo Corção (1896 – 1978).
O Globo, 25 de outubro de 1969.
Nota da editoria:
Imagem da capa: “Flor murcha”, por Kevin Denoyette.
Corção conseguiu diagnosticar precisamente do conflito que se travava no Concílio Vaticano II. Somos testemunhas hoje de quem o venceu, e quais as suas consequências