Liiceanu e a catarse cultural brasileira

Gabriel Liiceanu

O pessimismo não é uma visão do mundo, mas uma posição estratégica em face da imprevisibilidade.”,
Gabriel Liiceanu: filósofo romeno.



Na última parte do breve e primoroso Da Mentira [1], de 2006, o filósofo romeno Gabriel Liiceanu oferece uma reflexão sobre o peculiar cenário político estabelecido em seu país após a queda de Ceauşescu, em dezembro de 1989. Os passos imediatamente seguintes à derrubada da ditadura comunista pareciam ser, naturalmente, a árdua empreitada de reconstrução da nação — por décadas afogada em caos, violência e misérias de todos os tipos —, na tentativa de colocá-la de volta nos trilhos da prosperidade e da democracia, e a criação de condições que favorecessem um verdadeiro renascimento do povo romeno, finalmente liberto do jugo da Securitate e da servidão institucionalizada. Não foi, no entanto, o que ocorreu: membros, colaboradores e simpatizantes do antigo regime se entranharam em diversos setores da sociedade, inclusive os dos cargos públicos, políticos e jurídicos, mergulhando a Romênia em uma onda de corrupção e ódio “nunca vista na história desse país”. Qualquer semelhança não é mera coincidência — é lição de história.

Mas para entender em que medida a Romênia pós-Ceauşescu pode ter algo a ensinar ao Brasil pré-Bolsonaro — ou melhor, o que podemos absorver da análise de Liiceanu que nos seja útil para o momento histórico em que nos encontramos — é preciso que façamos, antes de mais nada, uma rápida leitura dos fatos pelas lentes do filósofo a que recorremos.

Pois bem. É em Maquiavel que Liiceanu irá encontrar o aporte para seu diagnóstico da situação romena. Para o pensador florentino, após a queda de um regime tirânico seria necessária a instauração de um período transicional de endurecimento, durante o qual os perpetradores do totalitarismo haveriam de ser exemplarmente punidos por seus crimes. A proporção de medo da punição teria relação direta com a probabilidade de tentativas futuras de restabelecimento de um regime totalitário, quase como que em um modelo pavloviano de estímulo e resposta. Para tanto, Maquiavel apontava ainda a necessidade do surgimento de um líder corajoso e bom o suficiente para levar a cabo este período de endurecimento, sendo capaz de, entrando em contato com o mal (o castigo aplicado a um outro), não se contagiar por ele (não tornar-se ele próprio um ditador violento), servindo-se de sua versatilidade (a virtú) para aplicar um mal no momento presente em vista de um bem maior futuro (a democracia e o afastamento do totalitarismo), conduta que Liiceanu chamará de moral de segunda instância e que desenvolverá mais detalhadamente ao longo da obra. [2] Foi na incapacidade do povo romeno de realizar plenamente esses preceitos de Maquiavel que Liiceanu encontrou a razão do declínio geral de sua pátria, ao invés de seu reerguimento, após a derrubada do ditador. Ele nos diz que o ocorrido na Romênia foi

“O oposto do que aconteceu na Alemanha, Itália ou Japão depois da guerra. Maquiavel fala de uma ditadura temporária (e esta foi a ditadura dos Aliados) destinada a reinstituir a liberdade nas sociedades atingidas pelos tiranos. Apenas que a nós, em lugar de um Douglas MacArthur que eliminou os chefes do exército japonês e impôs uma constituição democrática que fez que o Japão fosse hoje um dos países mais civilizados do mundo, veio Vîşinski, que, depois de eliminar Antonescu e os ministros do gabinete dele, em vez de uma democracia, exportou para a Romênia um regime em que a mentira não era um ingrediente da moral de segunda instância, mas o cerne mesmo das maiores imoralidades públicas da história do homem. Em vez de um mal ser purgado pelo mal reparatório do castigo (a Nurembergue dos Aliados) e pelo restabelecimento das coisas no leito da democracia e do ‘bem comum’, entre nós o mal foi amplificado por uma tirania do totalitarismo que Maquiavel não conhecera e em que a mentira perde seu sentido odisseico e sofre uma transformação radical.” [3]

Nessa passagem estão descritos os dois elementos faltantes, segundo Liiceanu, ao processo romeno de erradicação do comunismo em suas terras: como vimos acima, a punição exemplar dos envolvidos e o restabelecimento da democracia através de um período de endurecimento necessário (“ditadura temporária”), e o surgimento de um líder versátil e não corrompível para conduzir, pela aplicação da moral de segunda instância, esse processo, sem pervertê-lo no totalitarismo que jurou destruir. É, no entanto, em outra passagem que encontraremos o símbolo central que serve de ponte entre esse período da história romena e o momento atual brasileiro. É onde Liiceanu introduz a ideia de uma catarse interrompida. Segundo ele,

“A revolução (…) soldou-se, nos termos de Maquiavel, com a morte do tirano. Este foi o começo do momento catártico, o purgante psíquico pelo qual uma comunidade se livra do ódio e os membros dela ficam satisfatti, diz Maquiavel. Apenas que este processo, uma vez iniciado, não continuou e não se consumou. Uma parte considerável da sociedade romena viveu, em vez da purgação completa, um ato catártico interrompido e as toxinas psíquicas permaneceram, assim, não eliminadas. (…) A corrupção que vivemos hoje na Romênia não pode ser extirpada de nenhum modo, nas condições dadas, porque ela é o efeito instalado da catarse interrompida nos primeiros anos de 1990 pelos aliados do velho regime transformados em agentes da nova corrupção. (…) A mentira em que vivemos hoje está ligada a este roubo da revolução, a este confisco histórico: é absurdo que a Romênia tenha escapado de Ceauşescu para cair nas mãos dos ativistas, dos securistas e dos seus poetas de corte.” [4]

Capa da obra; "Da Mentira", de Gabriel Liiceanu.Apesar das óbvias diferenças específicas, há importantes semelhanças de fundo entre o cenário descrito por Liiceanu e os acontecimentos históricos no Brasil da instauração do regime militar em diante. Enquanto, na Romênia, a chamada Revolução de 1989 protagonizou talvez a mais violenta ruptura com um regime comunista já vista na Europa, culminando inclusive na execução de Ceauşescu (a “morte do tirano” de que fala Maquiavel), a ascensão dos militares brasileiros ao poder, longe do “golpe” proclamado histericamente aos quatro ventos pela esquerda, foi a concretização do clamor de uma população que, vendo a pátria à iminência de tornar-se uma nova Cuba, rogou pelo auxílio daqueles que juraram defendê-la, exemplos concretos da moral de segunda instância de Liiceanu e da ditadura provisória de Maquiavel. Porém, assim como a Romênia teve sua “revolução roubada” e interrompida, passando a ser governada pelos “filhos (parricidas) saídos da barriga de Ceauşescu[5], o Brasil gabou-se de ter se livrado do inimigo ao vencer a guerrilha, sem perceber que esta representava apenas um comunismo nominal, enquanto o comunismo real se infiltrava silenciosamente por todo o país através da estratégia gramsciana da ocupação dos meios de ação. O Brasil foi tomado de assalto não pela via eleitoral, jurídica ou da revolução armada, mas pela via cultural.

Após décadas mergulhada no mais profundo sono hipnótico, a inteligência brasileira, ainda letárgica, finalmente dá mostras de estar voltando a requerer o domínio de si mesma. Percebendo, mesmo tardiamente, que era estuprada enquanto dormia, o ódio contra o violentador e as toxinas psíquicas, de que fala Liiceanu, apenas agora começaram a explodir em uma catarse libertadora. A subserviência habituada transformou-se em insurreição, culminando na união espontânea de todos aqueles que, sofrendo nas mãos do mesmo abusador, decidiram encará-lo pelo que realmente era, descobrindo-lhe muito menor na realidade do que nas proporções fantasiosas que tomara na condição de espectro traumático, como uma criança que perde o medo da sombra fantasmagoricamente projetada na parede ao descobrir o objeto pequenino e frágil que a origina.

A eleição de um presidente conservador — contra todo um sistema de manipulação de informações, fraudes eleitorais e até mesmo a tentativa de assassinato do mesmo — é o símbolo máximo dessa união, e tem tudo para confirmar-se um dos mais importantes acontecimentos da história do povo brasileiro. Não o é, ainda, pelo simples fato de que tudo terá sido em vão se o êxito nesta emblemática e importantíssima batalha resultar na impressão de se ter vencido já toda a guerra, mais ainda se esta deixar de ser compreendida como guerra cultural que é e passar a ser enquadrada meramente pela ótica da “política técnica”.

De todas as valiosíssimas lições de Olavo de Carvalho sobre a vida política de um povo, talvez a mais importante delas tenha sido a da prioridade do aspecto cultural sobre qualquer outro, brilhantemente expressa na máxima de Hugo von Hofmannsthal que tanto gosta de repetir: “Nada está na realidade política de um país que não esteja antes na sua literatura”. Não é por acaso que tal união popular — que, confesso, não acreditava ser possível surgir ainda nesta geração — aparece mais ou menos duas décadas depois de Olavo ter reintroduzido no pensamento brasileiro o contraponto ideológico e o hábito de se contar também e sempre o “outro lado” de cada história.

Bolsonaro pode fazer as vezes do Príncipe de Maquiavel, que não é mau, mas “recorre ao mal [o endurecimento, o castigo etc] quando o bem deve ser salvo, defendido ou consolidado[6]? Pode; operações como a Lava Jato, desde que imprescindivelmente sustentadas na pressão popular, e na ocasião de um mundo imaginário no qual o poder judiciário brasileiro trabalhasse a favor do povo, e não contra, podem ser os primeiros passos de um processo de punição sistemática dos envolvidos no período mais vergonhoso da história do Brasil? Podem; mas nem as maiores realizações desse tipo poderão surtir qualquer efeito real e duradouro se não estiverem apoiadas em uma profunda restauração de ordem cultural e, sobretudo, intelectual, da nossa sociedade.

As sementes dessa restauração já foram plantadas, e os primeiros frutos começam a aparecer. Como um paciente em análise, que sofre as dores e angústias de ter revirados os mais pérfidos recantos de sua alma, mas é recompensado com a libertação dos sintomas, não será possível fazer respirar novamente a inteligência e um pensamento autêntico no Brasil sem o comprometimento mortal de, suportando sofrer as feridas ainda abertas, cicatrizá-las, transcendê-las e prevenir-se de que se refaçam.

Anna O., a mais famosa paciente da psicanálise, chamava a terapia de método catártico de talking cure (“cura pela fala”) e chimney sweeping (“limpeza de chaminé”). Retiremos as mordaças psicológicas, o controle ideológico da linguagem, e deixemos que o Brasil associe livremente até a cura. Limpemos a nossa chaminé da fuligem pútrida do marxismo cultural e do ódio contra a livre circulação de ideias, mantendo distante e abafado o tentador pensamento de que “já ganhamos a parada”.

Não repitamos o erro dos romenos. Não interrompamos a catarse cultural brasileira.


Escrito por: Daniel Marcondes.
Este artigo foi originalmente publicado em 27 de abril de 2019,
no website Culturateca (“versão” antiga da Cultura de Fato).


Notas:

  1. Liiceanu, Gabriel. Da Mentira. Tradução: Elpídio Mário Dantas Fonseca. Campinas, São Paulo: Vide Editorial, 2014. [Obra original: Liiceanu, Gabriel. Despre minciună. Bucareste, Romênia: Humanitas, 2006.] Subir
  2. O princípio envolvido na moral de segunda instância não deve, de maneira alguma, ser confundido com o profetismo enganoso do socialismo e do comunismo, tampouco com a ideia pura e simples de que “os fins justificam os meios”. Recomendo a leitura da obra na sua totalidade para o esclarecimento de quaisquer dúvidas nesse sentido. Subir
  3. Ibid., pp. 53 e 54. Subir
  4. Ibid., pp. 59 – 63. Subir
  5. Ibid., p. 62. Subir
  6. Ibid., p. 46. Subir

Aviso:

Escrevi este artigo em dezembro de 2018, portanto após a eleição de Jair Bolsonaro, mas antes de sua posse, motivo pelo qual me refiro a um Brasil “pré-Bolsonaro”. Passados quase cinco meses até a data da presente publicação, o que chamei de “interrupção da catarse cultural brasileira” já me aparece, infelizmente, não como algo meramente possível, mas enormemente provável. Isto é assunto da maior urgência, pois o Brasil, em se provando incapaz de renascer cultural e intelectualmente após o tsunami de imbecilização e destruição sistemática da inteligência pela esquerda, estará jogando fora não apenas todo o esforço e tudo o que a eleição de Bolsonaro representa, mas também qualquer possibilidade de rumos mais conservadores para o país em um futuro minimamente próximo. Outro insight não virá tão cedo. Subir


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