“O belo é o esplendor da ordem.”
Aristóteles (384 a. C. – 322 a. C.)
Uma de minhas mais antigas memórias de infância é a de acordar, pela manhã, ao som dos discos que meu pai colocava para tocar. De Cartola a Tchaikovsky, essa experiência foi enormemente responsável pelo desenvolvimento do meu senso estético e gosto pela arte em geral. Anos mais tarde, já na adolescência, foram também frequentes as reuniões entre amigos cujo único objetivo era o de escutarmos juntos a um determinado álbum, após o que passávamos horas intermináveis a discutir impressões e opiniões a respeito.
Para os nascidos por volta da década de 90 ou antes, esse tipo de vivência pode ter sido até bastante comum. Hoje, no entanto, na era dos headphones e da internet, qual criança experimentará acordar com um Puccini? Qual jovem reunirá seus colegas exclusivamente para dividir uma experiência artística? No tempo dos fones de ouvido, cada pessoa é um mundo próprio e fechado em si mesmo, apenas cada um sabe o que escuta e quando o faz. Os impactos de uma obra, as reações por ela provocadas, os valores que nos inspira, suas influências sociológicas, históricas, políticas e religiosas, considerações sobre sua execução, composição e estilo, nada mais se compartilha, sobre nada se conversa: tudo agora pertence já nem sequer à dimensão do individual apenas, mas à esfera do secreto.
O problema é que o belo, a ordem, a harmonia, não são criados pela nossa mente na particularidade de um “eu” e posteriormente projetados no “mundo exterior”, mas são próprios da realidade — objetivamente, concretamente — que se apresenta a todos nós e no interior da qual existimos. A partir do momento em que certos hábitos de contemplação estética fundamentais, como a apreciação musical, são retirados quase que totalmente para os confins da intimidade pessoal, o que estava antes ligado à realidade total e às raízes transcendentes deste mundo, e que portanto falava a toda a humanidade coletivamente, passa a dizer apenas dos sentimentos e desejos de um único sujeito. O gozo artístico, que nas obras de maior valor nos é proporcionado não em causa própria, mas à medida que nos mergulha, por pouco que seja, em um pedacinho de eternidade, deixa de ser este meio para tornar-se um fim em si mesmo, princípio de apenas mais uma forma de hedonismo além das muitas às quais o homem contemporâneo já se encontra submetido.
Do ponto de vista intelectual (para não falar do moral e religioso), esse rebaixamento ontológico da experiência estética é a pior de todas as tragédias. É mais fácil fazer um recém-convertido à vida de estudos ler as obras completas de Platão em grego do que fazê-lo sanear, pouco a pouco, seu gosto musical, por exemplo — e sem uma restauração imaginativa, sem uma reparação harmônica dos pensamentos, que são os “quadros” que compõem nossa “galeria de arte” mental, toda a filosofia do mundo será, para este, nada além de uma coleção de jargões a se decorar e aplicar mecanicamente a esta ou aquela situação.
Um verdadeiro cultivo da inteligência pode (e deveria) começar por atividades bastante simples em termos de aparência, mas muito densas em conteúdo, como, por exemplo, a criação do hábito de contemplar um pouquinho as estrelas lá fora, todos os dias, mesmo no céu urbano, ou redecorar a casa lentamente, na medida do possível, cuidando das imagens e símbolos que estarão cotidianamente diante dos nossos olhos. Se não percebermos ordem, proporção, consonância e afinação no cosmos, em toda a natureza e nos ambientes mais imediatamente próximos a nós, em vão procuraremos encontrá-los nas sentenças imóveis dos livros.
Por Daniel Marcondes.
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Notas da editoria:
Imagem de capa “His Master’s Voice” (1898), por Francis Barraud (1856 – 1924). A pintura é mundialmente conhecida como logotipo da gravadora americana RCA Victor.
As pessoas de hoje em dia comtemplam sexo, cerveja, pizza e churrasco.