Entre as nuvens e a lama

Obra "Poça de lama no deserto", por Erica Green.

(…) É tudo plano, mas só, no horizonte, o esguio campanário lembra
uma haste.
E, longe da linha sombria dos pinheiros,
Um açude, a hospedaria, três casas,
Onde começa, com uma cruz, a estrada para Deus;
De cada lado macieiras tristes prosseguindo, sem que se veja o fim.


Paul Claudel (1868 – 1955)



Ao longo de praticamente toda a história, o homem derivou seu senso de realidade, fundamentalmente, do esforço de ordenar sua própria vida, bem como a organização civilizacional, em vista da estrutura cosmológico-religiosa sob a qual se encontrava, compreendendo as primeiras como decorrências naturais desta última e, principalmente, vendo-se a si mesmo como uma espécie de miniatura — um microcosmo — do universo físico, com todas as consequências que isto implica. Nos dias atuais, porém, o que leva um sujeito a sentir-se seguro de estar vivendo na “realidade” — termo ele próprio já tão moribundo e empobrecido de significado — é sua adesão ao discurso público corrente, à versão mais atualizada da cartilha oficial de sentimentos e opiniões aprovadas, à mais recente narrativa acadêmico-científica tornada crença obrigatória pelo establishment.

As diferenças entre esses dois tipos de princípios norteadores são tão abissais que beiram o inabarcável; por ora, basta-nos destacar apenas aquela que talvez seja a mais crucial dentre todas e que abrange as demais: ambos correspondem a esferas ontológicas distintas.

A gravura de Flammarion é uma gravura de madeira criada por um artista desconhecido, é nomeada assim pelo fato que sua primeira aparência foi registrada no livro "A Atmosfera" (1888), do astrônomo Camilo Flammarion (1842 - 1925).Os elementos do primeiro tipo, ou seja, de ordem cosmológica e mítico-religiosa, têm suas raízes em estratos de realidade que precedem e excedem o homem em diferentes níveis: referem-se, como escrevi em outra ocasião, a “algo objetivo, concreto, [do] qual apenas participamos e cuja existência nos é completamente independente, não sendo criação nossa e não podendo sê-lo jamais, existindo desde antes de nós e perdurando inexoravelmente depois”.1 Mesmo antes de que os principais problemas e conceitos metafísicos começassem a ser formalmente enunciados (o que só viria a acontecer expressamente na filosofia grega) e mesmo antes da Revelação, não houve civilização propriamente dita que não tenha sido capaz de perceber, através principalmente da contemplação do cosmos, uma série de elementos e condições a apontar uma dimensão transcendente ao mundo material, pelo que puderam desde cedo intuir, apesar de ainda inaptas a expressá-lo o mais adequadamente, uma necessária hierarquia ontológica e, portanto, ordenar-se como parte e em vista desta hierarquia. Por outro lado, todos os elementos do segundo tipo, guias absolutos do nosso tempo, enquadram-se na categoria das atividades humanas: pertencem à esfera retórica, sociológica, política, das relações sociais, dos jogos de influência, dos esquemas de poder, em suma, das ações e discursos estritamente humanos a respeito de certos aspectos particulares da experiência. Se aqueles indicavam a transcendência a este mundo, estes fecham-se rigorosa e irremediavelmente nele. Houve, então, um criminoso rebaixamento do nível ontológico dos princípios aos quais o homem aspira, em relação aos quais busca harmonizar-se e dos quais vê derivar sua essência. Seu fim último, antes procurado nas mais luminosas alturas metafísicas, agora não se encontra senão nas picuinhas da política rasteira de todos os dias e no pseudointelectualismo da religião científica moderna, satânica emulação subvertida da verdadeira Igreja2 e morada de um horrendo imanentismo revolucionário.

Mas se houve, como dissemos, um declínio ontológico de profundidades tão inéditas, será preciso concluir que as pessoas, hoje, estejam não apenas aderindo cega e prontamente aos mais grotescos discursos ideológicos que se lhes esfregam ao nariz, caminhando, jubilosas, para a própria destruição intelectual, espiritual e moral, e sim vivendo por um esforço, mais ou menos consciente, de alterar seu próprio eixo de existência. É claro que isso não é possível de facto: essa “alteração” se dá apenas na esfera dos pensamentos e sentimentos, jamais na esfera do ser; o empenho, porém, de construir por sobre o íntimo da própria consciência e da estrutura do real todo um mundo novo feito de fantasias e vorazes desejos desordenados, principalmente através do fingimento psicológico e da manipulação da linguagem, termina finalmente por constituir, após praticado por algum tempo — e não é preciso muito —, um traço de verdadeira insanidade mental, na acepção do termo. O resultado é este que já vemos: multidões inteiras de pobres indivíduos em profunda cisão com a realidade, sintomas ambulantes de uma metapsicopatologia moderna.

Há em todos nós, em alguma medida, o que poderíamos chamar um certo receio natural relacionado não à verdade em si — pois fomos criados por ela, nela e para ela —, mas às consequências e exigências que o conhecimento dela pode acarretar, fruto das nossas misérias e condição atual, após a Queda. É o drama da responsabilidade humana e a fuga ao sofrimento — os quais caminham muito próximos e, acredito, podem ser entrevistos já inseparavelmente na vergonha de Adão e Eva narrada no Gênesis, logo após comerem do fruto proibido —, cuja resolução verdadeiramente suficiente e autêntica não se pode encontrar senão no interior do cristianismo (pois jaz no cerne da vida e Paixão de Nosso Senhor) e que podemos e devemos aprender a superar, pouco a pouco, ao nosso tempo e a partir dos esforços que nos são possíveis. O que hoje se faz, porém, é transformar esse receio inicial natural, que é menor e secundário, em um traço completamente dominante da personalidade: eis um novo modo de vida, baseado na covardia moral e na supressão do intelecto. Não obstante, de modo a que esse estado de coisas fosse plenamente estabelecido, era preciso, como já acenamos, fazer com que suas vítimas se entregassem voluntariamente a tudo isso, desejando, buscando e agradecendo a própria aniquilação.

A principal característica de um regime de escravidão é, obviamente, a dominação forçada sobre seus cativos. O único quadro no interior do qual o escravo se coloca nesta condição por vontade própria sempre foi o cristianismo: “Ecce ancilla Domini”, exclama a Santíssima Virgem na Anunciação. Hoje, seguindo a estrutura pseudo-religiosa das novas revoluções culturais e espirituais,3 as massas se dão elas mesmas a escravizar e, quanto mais o fazem, mais se regozijam de ser esmagadas pela tirania e pela miséria em todas as dimensões possíveis. Mesmo considerando os tempos mais recentes, podemos ver, por exemplo, que o jovem de algumas gerações atrás era o típico rebelde questionador que ajudou a construir o estereótipo clássico da fase adolescente; já o de hoje caracteriza-se justamente pela incapacidade de questionar o que quer que seja e pelo quão afoito se dá, subserviente até o desaparecimento do próprio eu, à absorção e posterior propagação dos mais torpes amálgamas ideológicos, abandonando atrás de si o antigo desejo de ser protagonista do próprio destino e sentindo-se feliz e útil exatamente na medida em que se coloca ao serviço das narrativas do momento, prestando-lhes reverências carregadas de sacralidade e dando-lhes ares de verdadeiras leis eternas.

Obra: "Saturno devorando seu filho" (1636), de Peter Paul Rubens (1577 - 1640). Tamanho Pequeno.Se o campo no qual essa modalidade de escravidão procura instalar-se é o campo da consciência, será apenas através do ato em que esta se ilumina retroativamente e se torna auto-consciência, ou seja, mais e mais consciente de si mesma, que se poderá retomar, pouco a pouco, a posse das chaves de suas portas, já não permitindo que ninguém as adentre sem expressa permissão e recobrando, finalmente, o “senhorio da própria casa” que Sigmund Freud, em sua famosa expressão,4 viu o homem moderno perder (e para o que muito contribuiu, aliás).

A autoconsciência é, de certo modo, um ver-se a si mesmo. Enxergar-se, portanto, cada vez por mais e novos ângulos exigiria observar-se desde fora. Mas o homem não é capaz de perceber nenhum objeto, muito menos a ele próprio, por absolutamente todos os seus lados e ao mesmo tempo — do ponto de vista físico, isso está muito bem; somos, porém, capazes e mesmo naturalmente inclinados à transcendência deste mundo material imediato e ao vislumbre e contemplação de níveis de realidade ontológica superiores, apenas em vista dos quais podemos verdadeiramente nos ver tal como somos.

Ou voltamos rapidamente a considerar a nós mesmos e ao universo físico em vista da eternidade e como expressões, em alguma medida, das verdades eternas que ela encerra, ou nos entregamos de vez, sorridentes e triunfantes, à senzala espiritual comandada por aqueles mesmos carrascos aos quais Nosso Senhor se refere quando diz: “Não temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode lançar na geena a alma e o corpo” (Mt 10, 28).


Por Daniel Marcondes


Notas:

  1. Cf. Os donos do céu. Subir
  2. Cf. E subirei ao altar de Deus. Subir
  3. Ibid. Subir
  4. Freud, S. Uma dificuldade no caminho da psicanálise (1917), in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 2006. Subir

Notas da editoria:

Imagem da capa: “Uma poça no deserto”, por Erica Green.


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raquel cunha

Lendo pela segunda vez! esse artigo ficou muito bom, o roger scruton fala um pouco sobre isso no livro ” a alma do mundo”, já leu? se não, recomendo a leitura, bjs

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