Os donos do céu

A gravura de Flammarion é uma gravura de madeira criada por um artista desconhecido, é nomeada assim pelo fato que sua primeira aparência foi registrada no livro "A Atmosfera" (1888), do astrônomo Camilo Flammarion (1842 - 1925).

Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…

Olavo Bilac (Via Láctea, XIII)



O advento do que hoje chamamos ciência moderna de modo algum operou uma simples mudança de paradigma investigativo, ou uma mera renovação metodológica das pesquisas científicas, mas uma transformação integral da concepção do homem sobre seu lugar no mundo e sua relação com ele. Contendo desde o início o germe de uma tomada de posição por assim dizer ideológica, essa nova era inaugurada jamais constituiu-se apenas de um novo modo de fazer ciência, de um conjunto de teorias e proposições que, pelas implicações de suas novas descobertas, houvesse inevitavelmente conduzido a sociedade humana a novos caminhos; foi, antes de tudo, uma trama de rupturas sistemáticas com todos os patamares já definitivamente alcançados pela tradição científica, filosófica e espiritual precedente, uma demolição deliberada dos pilares intelectuais e culturais que somente debaixo de enormes esforços puderam ser alicerçados ao longo da história. E dentre as muitas deformações causadas por essa nova mentalidade, uma das mais graves foi, sem dúvida, o modo como corrompeu a consciência cosmológica do homem.

A palavra cosmos (κόσμος) é o termo grego para “ordem”, “harmonia”, e foi exatamente isso o que todos os povos, desde os mais primitivos, viram quando olharam para o céu. Ali encontraram toda uma delicada e meticulosa organização de coisas, com formas perfeitas, movimentos e ciclos precisos, ritmos próprios e definidos, e uma particular interação sintônica entre cada pequeno ator daquela espécie de ballet celeste em que cada elemento se conforma tão consoantemente aos seus vizinhos e ao quadro geral do espetáculo, sem falar na beleza proporcionada, especificamente diferente da que se encontra na natureza terrena e tão responsável pelo desenvolvimento estético e simbólico do indivíduo. Era, enfim, uma exibição que parecia desvelar-se especialmente para eles.

Dali advinham também todos os sinais do tempo e do clima, possibilitando a marcação das horas do dia, das estações e de outros elementos básicos para a manutenção de colheitas, criação de animais, armazenamento dos alimentos, construção de abrigos e assim por diante, pelos quais lhes eram proporcionadas suas condições de subsistência. Tais disposições e os eventos astronômicos a elas relacionados logo adquiriram grande significação não só enquanto alertas e sinais de cunho meteorológico, mas também de ordem mítico-religiosa — esse universo pujante, que lhes aparecia dotado de toda uma sapiência viva e atuante, como que lhes falava, e não poderia haver melhor meio através do qual vislumbrassem a verdadeira inteligência criadora, sobre a qual este se encontrava necessariamente assentado e da qual era mero produto.

A toda essa experiência era natural que se seguissem, portanto, três intuições principais: 1) a de que a realidade é algo objetivo, concreto, da qual apenas participamos e cuja existência nos é completamente independente, não sendo criação nossa e não podendo sê-lo jamais, existindo desde antes de nós e perdurando inexoravelmente depois; 2) a de que tal ordenação harmônica do cosmos implica a intenção de uma inteligência que assim o faz (ou, como mais tarde dirá Platão, que dispõe as coisas segundo o Bem, isto é, da melhor maneira); e 3) a de que a presença de intenção e proporção não faria sentido sem uma consciência para apreendê-la, ou seja, que todo este cenário no qual se desenrola a história humana — cenário que foi, é e será sempre o mesmo, do primeiro ao último dia — tenha sido criado de fato para os homens, levando-os a assumir, quanto ao cosmos, uma posição ao mesmo tempo de centralidade e submissão (o que expressaram muito claramente desde sua arquitetura às narrativas míticas sobre as origens de tudo quanto há).

Porém, com a gradativa ascensão da chamada Idade Moderna, a experiência dessa completa integração à ordem do universo foi sendo corroída. Primeiro, fizeram com que o homem deixasse de acreditar em sua capacidade de apreender, com os próprios sentidos e diretamente, o que quer que fosse do mundo físico. Depois, fizeram-no renegar até mesmo a própria estatura objetiva deste, que passou a ser psicoticamente considerado um simples produto da mente humana.

Uma breve observação desses dois pontos nos podem ajudar a dimensionar melhor a profundidade do problema.

I — “Tendo olhos, não vedes?”


É muito fácil notar como toda a cosmologia antiga decorre naturalmente do que captamos com os nossos sentidos, ou seja, da experiência direta, imediata, que temos do mundo à nossa volta, e como se adequa perfeitamente ao que nos chega através da percepção.

Se praticamente todas as civilizações da história adotaram uma visão geocêntrica e estacionária da Terra, é porque nem um único ser humano jamais teve a impressão de estar sobre um corpo celeste giratório, rodando a milhões de quilômetros por hora ao redor de uma gigantesca bola de fogo, e a milhares de outros quilômetros sobre o próprio eixo, e sim a de ver as estrelas e os astros cumprindo seu giro à volta de um ponto central fixo, sobre o qual parecemos nos encontrar. Se essas mesmas civilizações imaginaram a Terra de forma mais ou menos plana e coberta por um firmamento cupular, é porque onde quer que estejamos, em absolutamente qualquer ponto do planeta1, ainda que no mais alto, o que nossos olhos nos informam é uma interminável planicidade a se estender até os confins do horizonte (quanto mais no caso dos mares e oceanos), sem o menor vestígio de qualquer tipo de curvatura, ao passo que ao contemplarmos o céu, mesmo durante o dia, mas especialmente ao entardecer e já noite adentro, principalmente quando está bem limpo e cheio de estrelas, temos constantemente a curiosa impressão de estarmos debaixo de um céu que se curva sobre nós, como um domo ou uma abóbada. Essas concepções permitiram — e mesmo implicaram —, por parte desses povos, toda uma organização civilizacional voltada ao esforço de imitar, expressar e refletir da melhor maneira, na ordem social, a ordem cósmica, uma vez que se compreenderam como parte dela e, portanto, como submetidos aos mesmos princípios e fundamentos, adotando-a consequentemente como guia seguro de referência.

Mas a ciência moderna substituiu os sentidos pela tecnologia e a experiência direta pelos equipamentos de alta precisão; nada mais que tenha sido captado pelo olho humano tem valor, a não ser que venha intermediado por uma lente de telescópio. É óbvio e desnecessário dizer que o aprimoramento tecnológico não apenas é bem-vindo às ciências como é condição essencial do seu desenvolvimento; porém, no contexto de uma leitura viciada dos dados obtidos, de conclusões já estabelecidas antes mesmo de qualquer análise e da proclamação dos instrumentos científicos como únicos meios válidos e suficientemente confiáveis para a investigação da realidade, como é o caso, o aperfeiçoamento desenfreado desses aparatos se transforma na mera fabricação de novas ferramentas de monopolização do conhecimento e decretação de verdades oficiais.

O problema das interpretações falseadas por um posicionamento preexistente está intimamente ligado a essa subordinação forçada da observação pura, digamos assim, à instrumentação científica, subordinação sem a qual os novos paradigmas impostos não se podem sustentar. Por exemplo: há muito que, ao longo deste artigo, deve ter ressoado na cabeça de muitos leitores o argumento de que o avanço tecnológico dos equipamentos foi responsável justamente por demonstrar que a experiência que temos do mundo através da própria percepção é completamente enganosa. Este seria, sem dúvida, um forte argumento, se isso ao menos fosse verdade — até hoje não há uma única informação ou conjunto de informações obtidas através dos artefatos modernos que prove que a Terra seja um globo e que esteja em movimento2; ocorre que os dados obtidos podem ser testados e interpretados diferentemente a depender do modelo cosmológico utilizado (ainda que, para os cientistas contemporâneos, quando um dado contradiz ou não se encaixa em seu modelo, a culpa seja sempre do dado). Logo, o discurso corrente acerca da inquestionável “comprovação científica” dessas questões nada mais é do que uma narrativa que se deseja tornar oficial a partir da escolha prévia de um modelo de referência favorito, visto que fundado, como já dissemos, sobre a recusa e a ruptura com todo um sistema de valores e concepções que se pretende eliminar. A velha cantilena de que a ciência moderna inaugura uma astronomia e uma cosmologia baseadas estritamente na observação, e que, portanto, não pode ser colocada em dúvida, não poderia ser mais falsa, nem constituir melhor amostra da já costumeira inversão histórica.3

Por outro lado, toda essa tecnologia termina ao alcance de apenas um punhado de eleitos pertencentes à turma do discurso oficial, garantindo, quanto ao pesquisador interessado, amador ou profissional, mas que se encontre fora do círculo das convicções obrigatórias da comunidade científica, que praticamente jamais tenha acesso aos instrumentos considerados os únicos válidos para a investigação dos problemas, e, quanto ao cidadão comum, que jamais lance mão (e, na maioria dos casos, que sequer se aproxime) dos apetrechos que ele agora acredita tratar-se dos únicos artifícios para um conhecimento real daquilo que o cerca. Ele já não crê na eficácia e na confiabilidade da própria percepção, da própria relação com este mundo, mas vive em profunda cisão com ele, dilatando cada vez mais uma fenda que agora só pode ser preenchida pela palavra de ordem dos novos donos do céu: o mundo é o que eles disserem que é, ainda que se veja outra coisa.

II — Jogo de espelhos


Mas não bastou tornar o homem um ser entorpecido, letárgico, convencido da debilidade da própria inteligência — foi preciso fazê-lo perder, ainda, o senso da objetividade mesma, da presença concreta, real, de tudo que o rodeia.

Do subjetivismo cartesiano ao kantismo, as pessoas foram levadas a crer que tudo o que experienciam, absolutamente tudo, seja produto de sua própria mente, arremedos de imagens mais ou menos provisórias se sobrepondo e ganhando formas quaisquer em conjunto. Não há universo físico real (quanto menos metafísico), mas apenas representações mentais, sinapses, impulsos cognitivos. Não há mais percepção sensorial de um mundo concreto, são as “sensações” que criam a imagem do que chamamos de mundo. Nossa consciência não mais apreende o que se nos apresenta realmente, agora é ela quem organiza um punhado de espasmos sensoriais caóticos e cria uma coisa a que chamamos “realidade”. Em resumo, nada existe objetivamente e, ainda que o fizesse, não poderia jamais ser conhecido como tal; somos um bando de fantasmas vagando por um campo de ilusões, uma horda de cegos sonhando com o que nunca vimos.4

Não olhe para cima


E aqui nos encontramos. Fragmentando completamente sua experiência do mundo material e crendo-se inconciliavelmente separado dele, que agora já lhe parece mais uma bizarra e incompreensível fantasia neurótica, o homem perdeu também, por consequência, todo seu senso de apreensão simbólica. O mesmo cosmos que, em todas as épocas, foi palco de espetáculos repletos de significados, é hoje uma tela preta e muda de propriedade dos sacerdotes da nova religião científica, que só se utilizam dele para deformá-lo aos olhos do público e alimentar seus devotos com as tão louvadas migalhas da vida extraterrestre, colonizações interplanetárias, dobras espaciais, viagens pelo espaço-tempo, multiversos, entre outros elementos de ficção científica travestidos de aguda perspicácia acadêmica — mas que nem por isso, ou exatamente por isso, não deixam de justificar rios de verbas públicas para suas “pesquisas”.

Parece que não é à toa, então, que Hollywood insista para que você “não olhe para cima”: o que lá se encontra não lhe pertence. Seu papel é olhar sempre e apenas para baixo, para o corriqueiro, para as distrações, feito um porco de fuço atolado na lavagem, completamente ignorante das atividades superiores, um Tales de Mileto às avessas. Se e quando ousar fazê-lo, que seja para ver essa mistura de circo repulsivo e entretenimento barato que a cosmologia moderna oferece — jamais para contemplar o belo, o verdadeiro e os vislumbres de eternidade que, mais do que qualquer outra coisa na natureza, nos são oferecidos pelos “céus [que] declaram a glória de Deus e [pelo] firmamento [que] anuncia a obra das suas mãos” (Sl 18).

O que lá se encontra não lhe pertence. Não olhe para cima.


Por Daniel Marcondes


Notas:

  1. No contexto da cosmologia antiga, não é correto considerar a Terra um planeta, uma vez que πλανήτης (planétes) é o grego para “errante”, “viajante”, e foi utilizado para designar os astros que se movem, em oposição aos fixos. Subir
  2. Para uma introdução contemporânea ao geocentrismo e às dificuldades inerentes ao modelo heliocêntrico, cf. Robert A. Sungenis, principalmente os livros Galileo Was Wrong: The Church Was Right (2006), Geocentrism 101: An Introduction into the Science of Geocentric Cosmology (2013) e o documentário The Principle (2014), a partir dos quais se poderá encontrar uma bibliografia especializada mais vasta. Sobre o problema do formato da Terra, talvez o livro mais importante já escrito sobre o assunto ainda seja o de Samuel B. Rowbotham, Zetetic Astronomy: Earth not a Globe (1865), cuja leitura, independentemente das posições defendidas, já se justifica apenas pela penetrante crítica que o autor oferece à ciência moderna, ainda no século XIX. Enfim, para um reconhecimento também contemporâneo acerca do valor e da profundidade da cosmologia antiga de modo geral, a partir da análise de um dos maiores físicos de nossa época, cf. Wolfgang Smith, principalmente as obras The Wisdom of Ancient Cosmology: Contemporary Science in Light of Tradition e Cosmos and Transcendence: Breaking Through the Barrier of Scientistic Belief (ambos com edições brasileiras pela Vide Editorial). Subir
  3. A ciência moderna praticamente inteira é feita de hipóteses criadas para sustentar uma hipótese anterior e, por sua vez, seguidas de novas hipóteses arranjadas para sustentar as primeiras, e assim por diante, em um eterno ciclo falacioso que quanto menos prova qualquer coisa, mais é aclamado como ápice do racionalismo científico. Um brilhante exemplo disso são as tais “matéria escura” e “energia escura”, substâncias jamais observadas que seriam responsáveis pela composição de 95% do universo (!), inventadas para poder explicar a jamais observada expansão do cosmos, por sua vez inventada para explicar a jamais observada teoria do Big Bang. Outro grande exemplo dessa técnica, fora do tema da cosmologia, são os malabarismos relacionados ao já moribundo evolucionismo (cf. Vij Sodera, One Small Speck to Man: The Evolution Myth). Subir
  4. É possível agora perceber o quão longe estamos daquelas primeiras intuições básicas a que nos referimos no início. Dito de outro modo: o mais selvagem indígena de uma tribozinha qualquer da América tinha mais consciência de seu lugar no mundo do que mil Stephen Hawking somados. Subir

Notas da editoria:

Imagem da capa: “Gravura de Flammarion”. A obra foi criada em madeira por um artista desconhecido, sendo assim nomeada pelo fato de que sua primeira aparição foi registrada no livro “A atmosfera” (1888), do astrônomo Camilo Flammarion (1842 – 1925).


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Shirley

Que texto brilhante… Meus parabéns!

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