Literatos de monociclo

Obra: “Stańczyk” (1862), de Jan Matejko (1838 – 1893).

Tudo se rende ao sucesso, até a gramática.”
Victor Hugo (1802 – 1885)



Parece que, no Brasil de hoje, para se passar por um intelectual de envergadura é necessário escrever sempre de forma lúdica, com tiradas (supostamente) humorísticas para todo lado, traquejos linguísticos “descolados”, piadinhas, trocadilhos e tudo que é bobagem desse tipo, estabelecendo-se a versão tupiniquim, especialmente retocada ao sabor desta terra, do intelectualóide bonachão consagrado pelo academicismo europeu da segunda metade do século XX.

O mais interessante (mas não surpreendente) é que tal vício encontre-se disseminado principalmente entre os que se autoproclamam heróis da restauração cultural do nosso país (e de modo mais intenso entre alguns que, vejam só, oferecem nada menos que seus cursos de escrita na internet). Esse estilo sofrível, maldita manifestação literária do espírito de pornochanchada e fanfarronice que habita desgraçadamente a alma de gerações inteiras de brasileiros, não é novo entre nós, e representa o que a literatura nacional já produziu de pior. Infelizmente, a influência de tal espírito parece interminável, ganhando adeptos (mais ou menos conscientes de sê-lo) até os dias atuais; debaixo dela, qualquer tentativa séria de expressão torna-se o mais rapidamente numa espécie de caricatura grafológica de um episódio da Porta dos Desesperados. A cada “rá!” e cada “ieié!” que se é obrigado a ler em meio ao texto dessa gente, maior é a sensação de se estar sendo tratado como um débil mental por uma versão pseudofilosófica do Sérgio Mallandro, enquanto o autor jura, de pés juntos, escrever feito um Dante.

Atualmente, está na moda falar sobre a “formação do imaginário” através da absorção dos clássicos da literatura universal, mas parece-me um tanto evidente que ninguém fará mais por você do que os autores brilhantemente bem sucedidos em expressar o próprio imaginário em sua língua materna. Bibliotecas inteiras da mais alta literatura não poderão lhe dar o que podem algumas páginas de um Gustavo Corção, por exemplo, pois temos ali não apenas um mero estilo particular a ser imitado, ou um modo caraterístico de uso gramatical, mas o resultado de um esforço consciente de dar forma, a partir das mesmas possibilidades linguísticas em que você esteve mergulhado desde o nascimento, a uma intenção e uma postura interiores, a uma espécie de direcionamento do espírito, e isso através de temas que foram objeto de toda uma responsabilidade existencial por parte do autor, ao ponto de que o contato com sua obra seja também o contato com aquilo que mais profundamente ocupou-lhe a alma. É de alimentar o nosso intelecto com esse tipo de experiência compartilhada, por assim dizer, de uma alma que, em seu mais agudo exercício racional e moral, abre-se para nós na peculiaridade da nossa língua nativa, com todos os ecos históricos, simbólicos e contextuais que esta implica, que poderemos, mais tarde, passar a assimilar mais e mais a experiência de outros que o fizeram também nas línguas estrangeiras.

Sem a recuperação desses dois pontos — humildade e paciência para se adquirir um maior domínio do próprio idioma a partir das formas e do fundo tradicional que o fundamentam, e uma responsabilidade moral a guiar todo esse percurso e seus fins últimos —, gargantear qualquer coisa acerca do atual estado da cultura brasileira, principalmente no que se refere às suas letras, não será nada além de jogar abacaxis e bacalhaus para o auditório.


Por Daniel Marcondes.
O autor está no Substack e no Telegram.


Nota da editoria:

Imagem da capa: “Stańczyk” (1862), de Jan Matejko (1838 – 1893).

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